Crítica | Moonlight – Sob a Luz do Luar (Moonlight)

Nota
5

O retrato cinematográfico de comunidades negras norte-americanas, muitas vezes, tende a se limitar ao lado embrutecido, através de figuras predominantemente masculinas. Frutos de um sistema falido que se torna cada vez mais negligente, a criminalidade, o uso excessivo de drogas e relações abusivas pairam no ar, sem que muitos tenham a chance de trilhar um caminho oposto — principalmente numa sociedade racista e excludente. Dentro dessa perspectiva, Chiron, o protagonista do vencedor do Oscar de Melhor Filme, “Moonlight” (2016), conhece e vive essa dura realidade. Preso a um relacionamento abusivo com a mãe e reprimido pelos seus comportamentos, o menino parece não ver sentido na própria vida. Desde pequeno, é apresentado às dores da solidão e, aos poucos, descobre sua sexualidade, mesmo que não entenda completamente tal sentimento. Afinal, a mínima demonstração de sensibilidade naquele ambiente já era passível à perseguição e vista como “aberração”. Quanto mais tenta lutar contra as próprias sensações e não desviar do “padrão”, mais Chiron se fecha para tudo e todos — inclusive para si mesmo.

Mais do que isso, o garoto se torna o reflexo de uma criança que gostaria de viver a infância como as outras e de amar e ser amado na mesma proporção. Isso fica claramente nítido quando tenta de várias formas uma aproximação com a mãe, sem perceber que a mão que o afaga é a mesma que o apedreja, parafraseando o poeta Augusto dos Anjos. Ao mesmo tempo em que busca o carinho, sente medo da figura materna. Sabe que qualquer laço entre os dois pode ser passageiro e sente o desprezo que dói e ecoa muito mais que qualquer agressão, independentemente do motivo.

Quando seu destino cruza com o do traficante cubano Juan e de sua namorada, Teresa, Chiron conhece o afago paternal pela primeira vez e enxerga ambos como seu refúgio. Nesse contexto, o olhar sensível de Barry Jenkins constrói uma simbólica relação, e transforma aquele homem num modelo para Chiron. Embora marginalizado pelos atos e pela sociedade, Juan destoa da brutalidade típica do cenário e se mostra sensível e empático com a dor e as angústias do menino. Afinal, consegue se enxergar nele e também se sente culpado pelo seu descaso, já que alimenta o vício em drogas da mãe do garoto e acaba responsável pelo seu estado decadente, sentindo o peso da consciência.

Muito mais do que completos estranhos um para o outro num primeiro momento, os dois compartilham vários anseios e se mostram duas almas “perdidas”, cada um à sua maneira, e à procura de um sentido nas suas trajetórias. Quanto mais Chiron se sente confortável ao lado de Juan e Therese, mais coragem tem para se libertar da repressão que sofre, ainda que seja um difícil trabalho. Em uma das cenas mais singelas e lindas da narrativa, Juan e Chiron tomam um banho de mar, simbolizando todo o desejo que ambos têm pela liberdade e uma espécie de purificação dos traumas e das angústias que os atormentam, assim como os diálogos sensíveis e humanizados que os acompanham — tudo na absoluta naturalidade.

Os anos passam e logo somos introduzidos à adolescência de Chiron. Ainda carregando todos os traumas da conturbada infância e vendo cada vez mais a decadência da mãe, o jovem mantém a personalidade calada e oprimida, principalmente na escola. Tudo isso só se agrava com a morte precoce de Juan, ainda que o filme não mostre o acontecimento explicitamente. Embora Therese seja a representação do amor materno que nunca sentiu com a mãe biológica, Chiron via Juan como seu maior porto seguro, alguém em quem podia confiar e se espelhar. Mesmo que ainda tenha o apoio de Theresa, o adolescente ainda fica sem chão, como se uma lacuna na sua alma se aprofundasse cada vez mais. Tal qual um ciclo, parecia não ter um fim, nem uma solução.

Perseguido e silenciado no ambiente escolar, o rapaz vê sua homossexualidade se aflorar ainda mais, embora não a entenda com clareza. Tomado por um intenso desejo carnal que sente pelo amigo, Kevin, Chiron se aproxima cada vez profundamente do garoto, numa constante luta contra as próprias sensações. Nesse contexto, Jenkins constrói cuidadosamente a relação de ambos e os mergulha numa masculinidade tóxica, como se o sentimento que um tem pelo outro fosse errado e a demonstração de afetividade não valesse nada. Para muitos, um homem demonstrar afeto pelo outro — sem importar a orientação — é atestado de “fraqueza”, e assim permanece na mente dos personagens.

Dito isso, à medida que os dois tentam se distanciar um do outro, acabam se aproximando. Em mais um trecho simbólico e poético, Chiron tem sua primeira experiência homoafetiva com Kevin, num momento que reúne vários símbolos e um apreço pela liberdade, com o praticamente reprimido beijo que une os dois rapazes na praia. Aqui, os diversos elementos da natureza compõem a singela cena, como água do mar que serve de plano de fundo e a areia que os dois acariciam enquanto se rendem ao sentimento recíproco. Tudo ali beira ao natural, sem cair numa caricatura e na artificialidade.

Em mais uma passagem de tempo, Chiron, já adulto e chamado de “Black”, ainda é assombrado pelos fantasmas internos e infeliz na vida que leva, apesar do respeito e do poder que conquistou na condição de líder da gangue da região — um problema do qual tentou fugir. Nessa ótica, sua transformação impressiona, já que vemos duas fases de um garoto franzino e observamos uma mudança física brutal. Mesmo revestido fisicamente por uma camada intimidadora, Chiron ainda se sente intimidado e, bem no fundo, mantém os mesmos tormentos da infância, principalmente com relação a seus sentimentos.

A partir do momento em que reencontra Kevin, relembra tudo que sempre sentiu pelo amigo e tentou reprimir, se remoendo por uma culpa que não existe. Afinal, para ter seu espaço na sociedade, vale tudo — até passar por cima de si mesmo e seguir uma imposição. O momento único entre os dois homens, onde tudo é revelado apenas pelo olhar de ambos e o desabafo contido de Chiron, transborda sensibilidade e consagra o sentimento que os uniu, numa bela e tocante sequência.

Além do roteiro extremamente irretocável, os outros quesitos técnicos também enriquecem a narrativa. A direção detalhista de Barry Jenkins, por exemplo, que em quase nada lembra o estilo teatral que originou a trama. Seja nas cenas sensíveis, seja nas cenas tensas, os enquadramentos casam perfeitamente com o enredo, assim como a trilha sonora e a fotografia que mescla cores de acordo com as personalidades e os comportamentos dos perfis mostrados. Onde o silêncio predomina, o foco nas reações se sobressai e cria uma atmosfera impecável em tudo.

Toda essa construção só se torna mais possível com as atuações extraordinárias. Entre as mulheres, Janelle Monáe encarna uma figura mais pacífica e observadora na composição de Therese e Naomie Harris surge como um furacão em cena, indo de uma aparência contida à uma selvageria em questão de minutos, principalmente quando Paula, sua personagem, está sob o efeito da droga e age abusivamente com o filho. Enquanto isso, Jharrel Jerome se destaca como Kevin, mostrando um grande potencial já no seu primeiro filme, e Mahershala Ali, mesmo com poucos minutos em cena, constrói um gigantesco personagem e uma atuação genuína, cativando o público e se consagrando no Oscar de Melhor Ator Coadjuvante, com um bela e merecida vitória.

Apesar desses ótimos nomes que roubam a cena, o trio de protagonistas que compõem as diferentes fases de Chiron se destaca como o maior entre o grande elenco. Incrivelmente sintonizados, Alex Hibbert, Ashton Sanders e Trevante Rhodes conduzem com maestria as angústias do personagem e conseguem construir um vínculo com quem assiste, através de olhares e uma aparência intimidada. Tal qual uma bomba prestes a explodir, Chiron vê suas sensações à beira de uma explosão e isso fica visível na composição dos três excelentes atores, que mereciam indicações e mais reconhecimento.

A cada novo período, a sensação que fica é que Chiron tenta se fragmentar e encontrar novas experiências, mesmo que isso custe sua própria felicidade. Aos poucos, o espectador é capaz de destrinchar precisamente todas as adversidades que levaram o protagonista ao ponto em que se encontra. Ainda que seja rodeado de pessoas, sente-se só e a solidão é a sua pior mazela, enquanto procura sua identidade e seu lugar num mundo que já foi cruel — e ainda é — com ele. Belo, cativante, crítico e irretocável, “Moonlight” finaliza com a mesma qualidade incrível do início, se tornando um dos melhores filmes de sua geração.

“Sob a luz do luar, os garotos negros parecem azuis”

 

Apenas um rapaz latino-americano apaixonado por tudo que o mundo da arte - especialmente o cinema - propõe ao seu público.

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