Nota
Aidan e Mia são dois irmãos que perderam a mãe e vão passar o natal com o pai e a madrasta, Grace, numa casa afastada da cidade. Uma pendência no trabalho obriga o pai a deixá-los sozinhos, mesmo com uma nevasca a caminho. O comportamento hostil dos meninos em relação à nova mulher de seu pai torna o clima pior, principalmente quando eles fazem uma descoberta perturbadora sobre o passado dela.
Os diretores/roteiristas austríacos Severin Fiala e Veronika Franz estrearam em longa-metragem com o comentado Boa Noite, Mamãe! (2015), mas é agora com The Lodge que eles de fato conseguem concretizar um projeto de cinema voltado para a ambiguidade, a partir de um plot central que poderia ser descrito como “dois irmãos traumatizados contra adulta estranha”. No filme de 2015 a dúvida em questão era frágil (a chave do mistério era prenunciável e a vilania de uma das partes era muito mais ostensiva), mas neste aqui, a partir do segundo ato, acontece uma evidente bifurcação dos pontos de vista: tanto a madrasta como os irmãos parecem vítimas e agentes de terror de alguma maneira. Mesmo com o semblante de inocência inerente à idade e com a vantagem de tempo em tela, as crianças tem um comportamento inapelavelmente seco para com Grace, cujo medo e insegurança tendem a deixá-la à beira da perda de controle.
Severin e Veronika encontram uma maneira visualmente gélida (e funcional) para destacar a inconfiabilidade dos protagonistas e tornar suas cascas quase impenetráveis, sem cair na armadilha de desumanizá-los. As composições rígidas e os cômodos simultaneamente amplos e claustrofóbicos são captados pelo diretor de fotografia grego Thimios Bakatakis (recorrente dos filmes de Yorgos Lanthimos), em cores pálidas e planos simétricos, que constantemente diminuem os personagens no espaço. O rigor não assume o tom farsesco de um Hereditário (2018) – filme com o qual The Lodge guarda semelhanças temáticas e formais -, mas permite os diretores se distanciarem suficientemente daquelas pessoas para, assim, poder manipular friamente a relação do espectador com elas. E ainda que poucas coisas realmente aconteçam ao longo do filme, o vazio que resulta desse distanciamento é facilmente preenchido com um espectro lúgubre e algo incompreensível.
Com o espaço de prestígio que o horror ganhou no cinema na última década, momento da tendência equivocadamente chamada de “pós-horror”, tornou-se um lugar de conforto para alguns cineastas basear a construção dramática na criação de clima e sugerir mais do que mostrar, com o intuito de montar um mosaico profundo da natureza humana/política/social. Mas cada caso é um caso, e a boa notícia é que, nesse processo de interiorização e ambiguidade, The Lodge não recorre à sugestão psicológica como um mero artifício de grife. A durabilidade da incerteza e a falta de uma materialização do perigo não apenas dialoga com a ideia da tensão proveniente do trauma (talvez o principal tema discutido aqui), mas projeta um mal que se manifesta na natureza cortante do cenário e até em gravações de um mini rádio.
Riley Keough, apesar de assumir o lugar da figura instável do filme, não deixa de ser também a pessoa mais fácil de estabelecer empatia, cumprindo bem a difícil tarefa de fazer Grace merecer compreensão do espectador e deixá-lo sempre em alerta. Na verdade, é justamente o peso emocional conferido pela atriz que dá ao terceiro ato de The Lodge uma força que não está presente no desfecho em si. Com toda a habilidade dos diretores para manipular emoções e gerar dúvida, chega a impressionar a incapacidade de fazer a tensão desaguar em algum lugar, ou, ao menos, possuir algum impacto peculiar justamente na retensão.
É mais uma vez sintomático da ideia do não visto como força motriz do terror mais genuíno, apegando-se a esse conceito mesmo quando a narrativa abraça componentes de um realismo surtado da cena e exige uma válvula de escape. Não obstante, até essa quase marcha à ré, Veronica Franz e Severin Fiala demonstram como a imprecisão do mal pode ser uma ferramenta eficiente na formação do medo numa época em que os recursos de sugestão do gênero aparentam se esgotar. Passados mais de 80 minutos da duração, The Lodge ainda não dá uma ideia concreta de qual a ameaça, mas está claro desde muito cedo que ela está lá. É como se exatamente a falta de qualquer elemento catalizador de terror representasse uma intimidação, presente desde a ambientação fria até o jogo de provocação entre os protagonistas.