Crítica | Central do Brasil

Nota
5

Chico Buarque, em uma de suas canções, afirmava que “a saudade é o pior tormento”, principalmente quando embalada pela dor de perder um ente querido. Em Central do Brasil, tal sentimento ganha vida através de Dora e Josué, duas vidas completamente diferentes que se cruzam numa jornada melancólica que muda para sempre as suas vidas.

Em um primeiro momento, o cineasta Walter Salles faz questão de distanciar o espectador da paisagem paradisíaca da cidade do Rio de Janeiro e apresentá-lo a um ambiente obscuro: uma rodoviária onde tudo acontece – desde pessoas em busca de novas oportunidades ao facilitado crime que paira no ar. No local, somos introduzidos ao cotidiano não só de Dora, uma professora aposentada que ganha vida escrevendo cartas para analfabetos, mas de várias pessoas avulsas que passam por lá. Aqui, o roteiro foge do estereótipo do brasileiro e recria um cenário em que tudo é aproximado da realidade, numa tentativa de buscar um diálogo crítico com o público e dar voz a diversas mazelas que assombram a sociedade, como a pobreza e o analfabetismo. E é justamente nesse exato contexto que surge a figura de Josué, um menino à procura de seu pai, acompanhado da mãe.

É interessante como Marcos Bernstein e João Emanuel Carneiro – os roteiristas – constroem o primeiro contato entre os protagonistas, por meio de uma antipatia recíproca. Enquanto Dora escreve uma carta, Josué a provoca com o incômodo barulho de um peão. Nesse sentido, fica clara a intenção de formar um vínculo entre ambos e uma evolução do futuro relacionamento, essencialmente com relação a Dora. Aos poucos, o espectador percebe uma frieza na ex-professora, ainda que seu ofício na rodoviária seja uma atitude nobre. É a deixa que a produção encontra para construir um tipo apegado ao passado e às memórias de um tempo que viveu – ou que deixou de viver. Uma figura amarga que, depois de tanta paulada da vida, já não vê mais sentido nela. Quando a mãe de Josué – vítima de um atropelamento – morre repentinamente, Dora se vê num dilema: deixar o menino vulnerável no relento ou dar abrigo pelo menos por uma noite? O seu lado frio quer a primeira opção, mas a consciência a faz escolher a segunda, como se tivesse duas personalidades lutando dentro do corpo de uma.

À medida que a trama se desenrola, cresce a afeição de Dora por Josué, e vice-versa. Apesar de quase vender o menino (e aqui Salles acerta quando traz um recorte cruel da sociedade: o tráfico de órgãos – embora silenciosamente), o sentimento de culpa da aposentada fala mais alto e ela resolve ajudá-lo a encontrar o pai. Numa jornada rumo ao agreste pernambucano, que passa pela miséria humana, a relação de ambos aumenta e um passa a confidenciar ao outro os anseios, os sentimentos e as próprias histórias. Dentro desse aspecto, é curioso o modo natural com que o roteiro trata o menino, trazendo questionamentos próprios da idade e um contraponto entre o lado infantil e maduro, principalmente com relação à sexualidade. O garoto não parece robotizado e, por vezes, demonstra mais maturidade que a adulta da situação, em momentos que testam a responsabilidade de ambos. São duas almas “perdidas” que se unem pela diferença em comum, não pelas histórias semelhantes.

Quando chegam ao sertão de Pernambuco, as dificuldades se agravam, mas não são suficientes para que Dora e o menino sejam separados, e o objetivo, eliminado. Nesse contexto, a produção transforma Josué na personificação da esperança, como se uma luz no fim de tudo o esperasse e mudasse de vez a sua vida. Depois de um breve contato com um caminhoneiro, para o qual Dora se insinua, e de uma romaria tensa que leva a senhora a um colapso temporário, Josué finalmente encontra o paradeiro da família paterna, numa cena transborda sensibilidade, mesmo que aqueles homens sejam embrutecidos pelas circunstâncias da vida. É mais um trecho que comprova o olhar sensível de Walter Salles e sua mensagem acerca da resistência, na qual tudo acontece naturalmente.

Além do primoroso roteiro, vale salientar os outros quesitos técnicos que acompanham a trajetória de Dora e Josué. É digna de atenção a forma de como o enquadramento do diretor orienta a visão do espectador, sempre se atentando aos mínimos detalhes que fazem a diferença, como o paralelo entre o cenário urbano do início e o meio rural carregado de marcas da seca e de problemas sociais que finaliza a narrativa, numa fotografia hipnotizante que salta aos olhos do público. Dentro desse plano, o modo de não desviar a atenção de quem assiste não falha, primordialmente quando nos deparamos com uma trilha sonora que remete o espectador às memórias mais longínquas, independentemente de sua relevância.

Ainda que todos esses pontos sejam extremamente notáveis, o elenco se mostra a maior riqueza do filme. Funcionando como alívio cômico, a saudosa Marília Pera diverte nas poucas situações que envolvem sua personagem, a desbocada Irene. Aqui, é importante ressaltar a relação amorosa implícita que o roteiro promove entre Dora e Irene, através de insinuações e até do questionamento de Josué, que insiste em saber o motivo pelo qual ambas não estão acompanhadas de seus maridos ou companheiros. Uma grande atriz que, sem dúvidas, faz muita falta no meio artístico.

Contudo, o maior mérito fica a cargo da dupla principal. O ator mirim Vinícius de Oliveira e a extraordinária Fernanda Montenegro – considerada por muitos como a maior atriz deste país – exalam sintonia desde o primeiro contato entre seus personagens e o rapaz, na difícil missão de contracenar com uma das mais renomadas intérpretes, consegue percorrer pelo tom humano e nada soa artificial, nem mesmo o comportamento de Josué. Fernanda, por sua vez, faz jus à sua indicação ao Oscar – primeira atriz brasileira nomeada ao maior prêmio da indústria – e constrói um perfil praticamente repulsivo no início e, aos poucos, uma figura humanizada no desenvolvimento da obra, numa performance que diz tudo só com a emoção e com olhar revelador. Um grande par numa genuína obra-prima do acervo nacional.

Depois de tantos momentos e muitas emoções, “Central do Brasil” encerra com a mesma qualidade com a qual iniciou, e ainda toca na ferida da saudade, fechando a jornada de Dora e Josué com um emocionante monólogo de Fernanda Montenegro lendo a carta de sua personagem ao menino, num dos maiores trechos de sua carreira irretocável. Os dois aprenderam um com o outro, assim como muitos na mesma condição ou semelhante. No espetáculo da vida, as cortinas se fecham e as pessoas se vão, mas fica o saudosismo, as lembranças de um período não tão distante e, acima de tudo, o aprendizado de uma relação. Comovente, bela e impecável. Uma película para não ser vista, mas sentida na alma.

“O dia que você quiser se lembrar de mim, dá uma olhada no retratinho que a gente tirou junto. Eu digo isso porque também tenho medo de que um dia você me esqueça. Tenho saudade do meu pai. Tenho saudade de tudo.”

 

Apenas um rapaz latino-americano apaixonado por tudo que o mundo da arte - especialmente o cinema - propõe ao seu público.

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