Crítica | A Chegada (Arrival)

Nota
5

O que seria do indivíduo sem o poder da comunicação? Inegavelmente, todo pilar da sociedade é sustentado pela comunicação, independentemente do seu tipo ou nível. Através desse mecanismo, captamos diversas formas de linguagem e conseguimos expandir nossa socialização, dando margem a inúmeras interpretações. No corpo e na alma, damos vários sinais e somos capazes de desconstruir barreiras e criar laços entre as comunidades e pessoas, fortalecendo a compreensão e as interações diversas.

Dessa forma, o longa “A Chegada” (2016) surge justamente para intensificar esse conceito, por meio do diálogo entre comunidades diferentes. De um lado, estranhas aparições extraterrestres – nomeados de “Heptapods” – e sinais com difíceis codificações. Do outro, uma doutora em linguística capaz de revolucionar esse contato histórico, já que se a mostra a única conhecedora desse idioma. No centro de tudo, o poderoso estudo da língua e seus impactos na comunidade, desde os mínimos aos máximos detalhes. Do corpo à fala, tudo tem seu devido código e nada passa despercebido sob os olhos da interpretação, entre erros e acertos.

Dito isso, acompanhamos a jornada de Louise Banks, a linguista responsável por toda essa pesquisa. Ainda que possa “desviar” do foco principal, esse destaque fica cada vez plausível à medida que destrinchamos o conhecimento da protagonista e a origem de seu fascínio pela comunicação, assim como sua facilidade em desmistificar enigmas. Quanto mais observamos a evolução de seus passos, mais mergulhados no seu universo ficamos, por meio de um vínculo inexplicável. Afinal, só uma pessoa verdadeiramente comprometida com a ciência e a humanização seria capaz de dialogar com um ser de outro espaço, sem qualquer experiência com a comunidade. Em poucas horas, Banks prova o motivo pelo qual escolheu a carreira, lutando pelo aprendizado e, sobretudo, pelo poder de se comunicar.

No entanto, a situação foge do controle quando a ignorância alheia se sobrepõe a tudo. Algo diferente da realidade? Não muito, já que a falta de informação e o sentimento exagerado de pavor andam juntos e, muitas vezes, impactam todo trabalho científico. Basta observar, atualmente, a intensificação do movimento anti-vacina e os argumentos temerosos, como se o método trouxesse mais doenças. Assim com o desconhecido da vida real causa preocupação, o da ficção também atinge esse tipo de sentimento, mas em proporções completamente agressivas.

Tal qual um vírus, o temor se espalha, permitindo que os seres de outro espaço sejam demonizados e perseguidos. Afinal, não é fácil conceber o comportamento dessas figuras, mas também não se pode justificar a perseguição. Em todo momento, Louise luta para desmistificar essa ideia equivocada de “perigo”, até dentro da comunidade acadêmica, mostrando que o maior erro entre os próprios humanos é justamente a falta de comunicação – o que respalda o medo de se comunicar com o desconhecido. Se o indivíduo soubesse usar o poder do diálogo, existiria menos barreiras irreversíveis.

À medida que somos hipnotizados pelo desenvolvimento da trama, observamos as fragmentações da linha temporal. Ora, estamos diante do presente, do passado ou do futuro? Em dados momentos, as referidas temporalidades se mesclam e confundem a percepção de quem assiste. Não temos certeza, por exemplo, de que época os extraterrestres representados são oriundos, como se estivéssemos perante os legítimos viajantes do tempo e as situações utópicas. Se estamos no presente, como revivemos elementos do passado? São questionamentos que não se limitam ao espectador, já que os próprios personagens parecem confusos com tudo isso.

Nesse viés, quanto mais Louise e sua equipe tentam desmembrar o enigma, mais as peças se encaixam. Sobretudo, quando somos apresentados à relação de Louise com a filha, como se tudo aquilo fosse fruto da imaginação da cientista ou uma profecia do seu próprio destino. Mais do que isso, Denis Villeneuve mostra que os humanos e os heptapods possuem concepções diferentes sobre tempo e espaço e, enquanto o segundo grupo não sente impacto das mudanças temporais, o primeiro precisa desse discernimento e de uma ação para que o passado ou o futuro sejam justificados e postos em evidência.

Nos quesitos técnicos, a direção cuidadosa de Villeneuve se mostra um verdadeiro tesouro. Responsável por enquadramentos extremamente detalhistas, o cineasta não poupa seu público e foca com excessos justificáveis nas expressões dos personagens. O seu trabalho chama a atenção, essencialmente na veracidade dos sinais e das figuras extraterrestres, como se estivesse realmente copiando de algo já conhecido. Nada foge de sua ótica – nem a do espectador, permitindo uma conexão mais próxima com o público.

Além disso, a fotografia hipnotizante e a trilha sonora enigmática atingem o ápice da catarse de mistério que o filme promove. Ambos não são escolhidos à toa e isso fica cada vez mais perceptível no decorrer da narrativa, principalmente em trechos que exigem a profunda atenção de quem assiste. Até mesmo no silêncio dos heptapods se encontra um som ensurdecedor, prezando excessivamente pela comunicação – seja verbal, seja corporal. São elementos que somente enriquecem a trama, primordialmente numa era de “ruídos”.

Apesar de todos esses artifícios enriquecedores, a presença de Amy Adams é a maior qualidade da história. Mesmo racional, sua Louise Banks consegue ter um passionalismo notável e, com maestria, mesclar ambos sentimentos. Suas expressões contidas são ricas e podemos perceber sua sensação apenas no olhar revelador, bem como sua emoção. Na maior performance da sua carreira, Adams poderia passar despercebida pelo tipo de personagem, mas foge desse risco e aproveita o máximo que pode o roteiro impecável que tem em mãos – e vice-versa, já que o talento extraordinário da atriz também é valorizado pelo texto. Grandiosa em tudo que faz, sem dúvidas.

Envolvente, crítico e complexo, “A Chegada” finaliza com a mesma qualidade irretocável do início, respondendo a algumas questões da obra e permitindo diversas interpretações. Um filme que, independentemente de sua cronologia, mantém a atualidade e o resultado é incrivelmente satisfatório, mostrando que o tempo pode ser concebido relativamente. Obra-prima demais.

“A memória e a linguagem são duas coisas completamente estranhas”

 

Apenas um rapaz latino-americano apaixonado por tudo que o mundo da arte - especialmente o cinema - propõe ao seu público.

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