Crítica | Ligações Perigosas (Dangerous Liaisons)

Nota
5

Em 1782, o general Choderlos de Laclos, afastado de suas funções, escandalizou o falso moralismo de uma sociedade francesa quando retratou a podridão de nobres e despejou sua crítica ácida às hipocrisias cultivadas por esse grupo social. No seu romance “Ligações Perigosas”, o célebre escritor coloca a nobreza chafurdada na lama, como porcos sedentos por comida, e os maquiavélicos jogos que manipulam toda a convivência dessas pessoas. Afinal, em nome das aparências, vale tudo – inclusive, passar por cima de todo tipo de sentimento.

Mais de 200 anos depois, em 1988, a obra ganha uma adaptação cinematográfica nas mãos do cineasta inglês Stephen Frears. Aqui, conhecemos mais profundamente os inescrupulosos Marquesa Isabelle de Merteiull e o Visconde Sebastian de Valmont. Ela, uma mulher traída, ressentida e obcecada pelo prazer que tem com a humilhação. Ele, um irresponsável mulherengo que, ao mesmo tempo que é manipulado, sabe manipular facilmente para conquistar suas ambições. Observe que, embora a sórdida dupla não esconda seus podres um para o outro, a sociedade tem uma outra visão de ambos justamente pela fogueira das vaidades que a Marquesa e o Visconde empregam diante de todos. Ora, os dois não passam de meros vaidosos e egocêntricos – estão acima de tudo; abaixo de ninguém.

Dito isso, é importante analisar separadamente essas duas personas. Mesmo que sejam semelhantes na ambição e no caráter, possuem trajetórias e comportamentos diferentes. Dentro desse jogo, existe em Isabelle a personalidade dominadora – é ela quem dita as regras e as manipulações que comandam a elite. Muito além dessa perspectiva audaciosa e desse narcisismo, a Marquesa é uma mulher que se impõe num patriarcado que espera exatamente o contrário não só dela, mas do sexo feminino num geral. Enquanto homens usam e abusam de seus privilégios, a protagonista devolve na mesma moeda e domina tudo o que toca, inclusive, a completa satisfação que nutre em depreciar o gênero masculino – vide a sua relação abusiva com Valmont. É, portanto, o que Laclos e Frears chamam de “personificação da loba em pele de cordeiro” – sob os olhos da sociedade, uma pessoa acima de qualquer suspeita.

Quanto mais somos mergulhados no universo manipulador da Marquesa, mais percebemos as artimanhas que a personagem usa para a própria sobrevivência. Com muita perspicácia, Merteiull sabe observar as fraquezas – ou o que ela julga ser uma “fraqueza” – dos outros e agir no momento certo. Afinal, o que se deve fazer quando alguém descobre seus segredos mais ocultos? Em nome da conservação de um status ilusório e dos sigilos mais obscuramente íntimos, ela usa a invasão da privacidade do outro para alimentar seu ego e suas chantagens. Na literatura e na adaptação, nada parece fugir da ótica perversa da protagonista e sua onipresença é devastadora num xadrez onde as peças se destroem e essa tragédia é a maior excitação de quem comanda o jogo.

O Visconde, por outro lado, é um sujeito que não mede o próprio caráter, nem as consequências de seus atos, muito menos esconde suas reais intenções. Mesmo que seja mais emocional do que sua parceira, Valmont surge como um verdadeiro predador sexual e sua fama se espalha feito rastilho de pólvora em toda corte. Diferentemente das máscaras diárias que Isabelle veste, Sebastian só usa quando deseja atacar uma vítima frágil e indefesa – a velha tática de fingir um “bom samaritanismo” para atingir seu alvo e destruir reputações. Nesse contexto, o recurso que Frears usa na composição do ardiloso personagem é brilhante, visto que é tão real – ora, não é muito difícil ver os vários tipos idênticos ao visconde – e não percebe que é mais uma peça no tabuleiro pérfido da Marquesa, ainda que pense que o controle está nas suas mãos.

Nessa teia de mentiras, manipulações e frieza, as vítimas dos dois personagens crescem na narrativa e, aos poucos, vemos as reais “justificativas” para tanto desfecho trágico que existe ali. Há, mais do que isso, um “padrão” – mulher, cuja inocência e virgindade chamam a atenção de uma sociedade violenta nos costumes – nas ações, como a Cecile de Volanges, a doce sobrinha da marquesa, e Madame de Tourvel, uma religiosa dama da corte. É curioso, nesse ambiente, pensar que, embora as duas mulheres tenham praticamente as mesmas personalidades, ambas são vítimas de Isabelle e Sebastian por motivos bem distintos. Enquanto a primeira é apenas um desejo de vingança da Marquesa, a segunda é um anseio sexual do Visconde – mas as duas são vistas da mesma forma: como objetos ou fantoches desse teatro de rostos.

À medida que Merteiull e Valmont prendem as duas ingênuas mulheres nas suas teias, os dois não percebem que, muito além da destruição das imagens de ambas moças, o castelo de cartas que une o ardiloso par se rompe e, aos poucos, a verdadeira face da Marquesa é vomitada para a alta sociedade. O espectador, nessa visão, pode observar cada linha da decadência da protagonista, e é notável esse tom que Frears assume no roteiro, principalmente num frio monólogo em que Isabelle confessa que sempre estuda e calcula cada passo de suas “presas”. Ali, já é a personificação do teto de vidro que se despedaça lentamente sob a cabeça de uma Marquesa tão altiva e tão dona de si, mas que demonstra uma fragilidade na frieza, como se já estivesse sentindo a perda total do controle sobre tudo e todos.

E é exatamente esse descontrole o motim de tudo. Tomada de raiva por Sebastian, a Marquesa conspira contra o ex-parceiro e incita Danceny, o jovem cavalheiro que corteja Cecile, a tirar satisfação com seu algoz. Aqui, Frears é extremamente cuidadoso nessa condução, essencialmente por assumir a veste de Merteiull e também calcular os rumos dos personagens até o destino de cada um. Manipulado pela Marquesa, Danceny desafia o Visconde para um duelo que acaba fatal para o segundo. Ferido no peito com espada, Valmont aproveita seus últimos momentos de vida para confessar seu amor pela Madame de Tourvel, sucumbida pela vergonha do “pecado” e enclausurada à beira da morte num convento, e entrega para o músico um turbilhão de cartas comprometedoras trocadas com Merteiull. O recado do roteiro é certo: a morte não é só do Visconde, mas de Isabelle e de tudo que cerca esse amontoado de manipulações também.

Antes de falar da extraordinária intérprete da marquesa, aproveito o ensejo para elogiar, primeiramente, as outras performances que conduzem a história. Enquanto vemos Uma Thurman contida e um pouco extravagante com sua Cecile e olhamos uma Michelle Pfeiffer ainda mais silenciosa com sua reprimida Madame de Tourvel, chegamos ao perfil intensamente corporal de John Malkovich, estupendo como o crápula visconde. São três grandes atuações dignas de atenção, principalmente pela defesa sóbria e realista de seus intérpretes, conquistando quem assiste com maestria. Michelle, inclusive, faz valer sua indicação ao Oscar de coadjuvante e mostra um de seus melhores momentos em cena, com certeza.

Eis que, depois de uma sucessão de jogos, o filme chega ao seu epílogo devastador – e talvez o maior de toda a obra, justamente pelo desfecho simbólico. O silêncio que ecoa é ensurdecedor e Glenn Close, na sua maior performance da carreira, não precisa dizer absolutamente nada para que o recado seja dado ao espectador. A força da atriz é tão avassaladora que hipnotiza e desestabiliza qualquer um num mar de absurdas atuações. Ela surge de maneira extremamente poderosa do início ao fim e, muitas vezes, seu tom contido vale muito mais do que palavras e gritos. Se Isabelle de Merteiull é sinônimo de artificialidade, sua intérprete, sem sombra de dúvidas, simboliza a naturalidade de toda essa construção. Uma atuação maior do que qualquer tipo de prêmio.

Visualmente belo – desde a recriação dos cenários luxuosos e da vaidade que impera nesse ambiente à direção magnética de Stephen Frears – e extremamente crítico, “Ligações Perigosas” mostra uma realidade que ultrapassa gerações e consegue cravar sua mensagem com muito brilhantismo. É, sobretudo, um grande exemplar dos podres e exageros que alimentam uma elite que explora ao máximo quem a serve – a quantidade absurda de empregados da marquesa, por exemplo – e as relações hipócritas que pairam sob esse lugar. Uma fogueira das vaidades mascarada por estética. Uma genuína obra-prima que vale a pena ser revista várias vezes e não perde sua atemporalidade.

“A chave do paradoxo é a absoluta falta de caráter”

 

Apenas um rapaz latino-americano apaixonado por tudo que o mundo da arte - especialmente o cinema - propõe ao seu público.

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