Crítica | Nomadland

Nota
5

Em uma de suas canções, a banda “The Smiths” questiona o significado de lar, principalmente quando fugimos da esfera física do seu conceito – uma tradicional casa – e adentramos no valor subjetivo da palavra – o sentimento. Para alguns, o que vale é a primeira opção. Para os nômades, a segunda é mais relevante e significativa. Dessa forma, a cineasta Chloe Zhao usa esse questionamento como porta de entrada para o universo de “Nomadland” (2020), um grande exemplar sobre os diversos tipos de moradia numa atmosfera em que o coletivo nômade resiste às investidas do capitalismo.

Desde o princípio, o roteiro é profundamente claro no seu objetivo crítico e humanizado. Aqui, acompanhamos a saga da viúva Fern, uma senhora na casa dos 60, e sua peregrinação pelas estradas norte-americanas, depois da morte do marido e do fechamento da fábrica que sustenta boa parte da cidade na qual vive. Nesse contexto, Zhao faz questão de construir aos poucos as camadas do comportamento humano da protagonista, desde os seus ideais a seu amor pela terra, e legitimar o pensamento que critica o sistema capitalista, indiretamente ou não. Há, dentro dessa composição, uma singela diferença entre as ideias de moradia, especialmente quando percebemos que Fern se define como “sem casa”, não “sem teto”, já que o seu carro é seu companheiro e, portanto, seu teto. “Lar”, para a personagem, tem o seu mais absoluto valor sentimental – algo que o capitalismo jamais reconhece.

Dito isso, é interessante a abordagem do roteiro na condução dos nômades, primordialmente pelo tom humano e honesto. Em nenhum momento, Zhao prejudica a interação dessas pessoas no enredo, nem a trajetória de Fern. A simplicidade do texto cresce a cada amadurecimento da protagonista, como uma flor que desabrocha em toda estação. Fern, acima de tudo, é uma mulher com qualidades e defeitos e isso a torna tão realista que esquecemos a ficção e passamos a observar o “mundo real” do jeito que é, com seus altos e baixos. Os diálogos são contundentes no que propõem, principalmente pela crítica simbólica ecoada pela voz da personagem, valorizando todos os seus princípios e a noção de desapego. Além, claro, da responsabilidade na representação desse grupo alternativo de pessoas.

Dessa forma, os quesitos técnicos impressionam de tão simples. Afinal, a direção de Chloe Zhao é poderosa, com enquadramentos que valorizam a terra e a expressão dos personagens, criando um elo com o público. Em todo instante, sentimos aquela atmosfera humanizada sem apelos, onde as emoções são destacadas e os reais sentimentos configuram a beleza de uma narrativa que chama a atenção. A fluidez da ótica da diretora é impressionante não só pelos pontos já citados, mas pela ousadia de não tornar complexo um tema que por si só é amplamente discutido de forma não muito simples. Além disso, a fotografia é um deslumbre, com paisagens e cachoeiras que encantam e mostram que o maior lar que pode existir é a bela natureza que merece seu devido valor. São pequenos detalhes que fazem toda diferença numa poesia em forma de filme, que crava sempre seus pés no chão num mar de objetividade e ideias capazes de uma concretização absoluta, assim como o jogo de cores e a quase silenciosa trilha sonora.

Mais do que isso, o roteiro permite que sintamos também os perigos que esse tipo de isolamento pode oferecer a essas pessoas, como a violência nas estradas e a iminente interferência capitalista. Desse modo, percebemos que não há romantização da questão, e esse talvez seja o maior ponto da obra, justamente por evidenciar que esse estilo também tem seus problemas e obstáculos. Há, em meio a tudo isso, um forte questionamento sobre as desigualdades sociais, especialmente quando se vê a noção de moradia e como a especulação imobiliária leva diversas pessoas a recursos que se opõem ao sistema. Zhao, que já tem no currículo o crítico Domando o Destino” (2017), conhece essas vestes e sabe que colocar essa carta na mesa pode suscitar várias indagações na sociedade, sempre de maneira responsável e coerente.

Embora todos esses aspectos sejam incrivelmente louváveis, a força de Frances McDormand em cena se sobrepõe a tudo. No seu melhor momento da carreira, a veterana tem em mãos um perfil grandioso, que evolui a cada trecho do longa e assusta pela sobrenatural atuação. Gigante, Frances não hesita em mergulhar no universo de Fern, e esse é o maior trunfo da trama, justamente pela espontaneidade que a atriz modula, como se quem estivesse ali fosse realmente uma senhora nômade que se encontra na própria vida e a reconstrói. Repare que não há uma caricatura, nem maneirismos que tornam a figura artificial. O que existe nessa composição é uma naturalidade genuína, emulando uma performance contida e extremamente coesa dentro do contexto. Para mim, é a melhor atuação feminina do ano e dificilmente alguém pode tirar esse título – e olha que temos Viola Davis em “Ma Rainey’s Black Bottom e Carey Mulligan em “Promissing Young Woman, intérpretes com seus talentos devidamente valorizados.

Numa sucessão de qualidades, “Nomadland” finaliza a saga de Fern e dos outros nômades de maneira simbolicamente humana, se tornando especial pela carga tocante que permeia todo cenário. Não romantiza, nem demoniza. A realidade, nua e crua, segue com sua voz e os créditos personificam a grandiosidade de um texto que colhe o que há de mais singelo na alma. Ouvimos muitas histórias tristes – como a da idosa com câncer – e relatos felizes, mas sempre unidos pelo mesmo sentimento de liberdade e esperança depois de tanta exploração e tanto caos. São desabafos reais que ecoam e consagram a preciosidade de uma verdadeira obra-prima – mesmo que, para muitos, ele não seja tão gigantesco assim. Veja e sinta esse filme. Vale a pena, sem sombra de dúvidas.

 

Apenas um rapaz latino-americano apaixonado por tudo que o mundo da arte - especialmente o cinema - propõe ao seu público.

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