Review | Ratched [Season 1]

Nota
4

Uma das maiores personagens da literatura norte-americana, a enfermeira Mildred Ratched se personificou em algumas adaptações nas telas e nos palcos. No filme Um Estranho no Ninho” (1975), cujo título é o mesmo do livro, a antagonista surge como uma mulher fria, sem escrúpulos e capaz das piores atrocidades com um cinismo no olhar, numa redoma em que suas ações despertam uma certa tensão. 45 anos mais tarde, essas mesmas características se mantêm, mas sob uma nova roupagem, onde vemos uma Mildred um pouco menos fria e mais emocional, regida pelos instintos. Mais do que isso, conhecemos as raízes daquela que é considerada a maior vilã de todos os tempos. Eis, portanto, a proposta de Ratched (2020), a segunda série de Ryan Murphy para a Netflix.

Em um primeiro momento, as comparações entre o filme, o livro e a série se tornam indispensáveis, principalmente pelas convergências e discordâncias entre ambos. Como primeira semelhança, podemos lembrar que a enfermeira Ratched da série é a que mais se assemelha com a do livro, justamente pela personalidade complexa e pelo seu tratamento austero com os pacientes. Aqui, conseguimos sentir uma explosão de sentimentos pela personagem, diferentemente do filme que só desperta ódio por esse perfil. Na série, sentimos raiva, pena e um certo fascínio pela imagem enigmática que Mildred oferece a todos. Nesse instante, o roteiro sabe conduzir muito bem as camadas da enfermeira, demonstrando que a carcaça rígida esconde os mais diversos instintos e sensações inexplicáveis sob os olhos de alguns. Há uma certa fragilidade no seu olhar, ao mesmo tempo que suas palavras e suas ações soam frias e capazes de tudo pelos seus objetivos – um perfeito contraponto num só corpo, numa só alma.

Essa oposição fica ainda mais evidente no desenvolvimento dos episódios. A Mildred do primeiro episódio em quase nada lembra a Mildred dos últimos, como se duas personas estivessem se digladiando entre si. No Lucia State Hospital, onde a personagem trabalha, há bizarrices que não só escancaram o pensamento atrasado da década de 40, mas também os percalços que a narrativa toma e algumas situações que ajudam a compreensão por Ratched. O local, chefiado pelo rígido médico – o único do lugar, por sinal – Richard Hanover, é o retrato do tratamento frio que problemas psicológicos recebem, como se saúde mental não tivesse valor algum e todo distúrbio fosse reduzido à loucura. Isso fica nítido com a inserção da lobotomia, principalmente como mecanismo para “reversão” da sexualidade de pacientes. Tal desenvolvimento, apesar de pouco explorado, rende uma certa aflição justamente por oferecer risco a quem é lobotomizado, não a cura, demonstrando a barbaridade silenciosa que se instaura nesse ambiente.

A relação de Mildred com os outros personagens também chama a atenção. No primeiro episódio, não se sabe o motivo pelo qual a enfermeira deseja tanto um emprego no hospital psiquiátrico. Só o que vemos é uma Mildred hipnótica, que consegue manipular o Dr. Hanover para obter uma vaga na enfermaria do local. No segundo episódio, no entanto, descobrimos que a personagem possui um irmão – Edmund Tolleson – preso numa espécie de jaula pelo assassinato de um grupo de padres e, aos poucos, somos capazes de reconhecer o que leva a protagonista a esse escudo de frieza, como uma tentativa de esconder os mais intensos sentimentos. A ideia de colocar dois irmãos num motim principal é muito bem articulada, especialmente por quebrar a expectativa de um possível casal, algo recorrente em muitos filmes – em especial, de terror. Os planos da câmera que envolvem cena com os dois são bem aproveitados e conseguem captar a claustrofobia da prisão mesclada com a amplitude do local, num trabalho afiado e, acima de tudo, crítico.

Outra narrativa interessante é a que envolve a sexualidade de Mildred. Numa época em que homossexualidade é vista como “doença” – inclusive, há pacientes homossexuais no hospital vítimas da lobotomia –, e perseguida com força, a protagonista tenta mascarar sua orientação. Quando Gwendolyn Briggs, a secretária de imprensa do governador Wilburn, surge, a sexualidade de Mildred aflora, como uma autodescoberta e um reconhecimento de suas sensações. Aqui, eu me arrisco a dizer que a construção delicada da relação entre essas duas mulheres é a maior da obra, justamente pela naturalidade e a química. Embora as duas vivam uma fachada, Gwendolyn não foge tanto de seus sentimentos e é a primeira a flertar com Mildred, que se horroriza. Há ali um medo não só da sociedade, mas também de si mesma, como se não fosse capaz de amar e ser amada na mesma proporção – e o roteiro evidencia cada vez mais isso. Não é uma aproximação forçada, mas genuína e muito bem trabalhada.

Entretanto, nem tudo é um mar de rosas. A subtrama que envolve Richard Hanover parece pouco deslocada do restante, apesar de criar um mistério em seu torno. Por causa disso, pouco se aproveita da presença luxuosa da bilionária Lenore Osgod e os motivos que a levam a querer a cabeça do médico. Entendo que talvez seja uma chance do roteiro de tirar o foco em Mildred – mesmo que ela também faça parte dessa trama – e desenvolver os secundários, mas tudo soa apelativo em alguns momentos, permitindo que haja um distanciamento entre a história e quem assiste. A resolução do arco – que não vale citar aqui para não dar mais spoilers – surge de modo raso e desnecessário, desperdiçando uma atenção maior na próxima temporada. Isto é, se aquilo foi realmente o fim mesmo de Lenore e Hanover. Num resumo de tudo, é um desenvolvimento que deixa a desejar em certos trechos, enquanto apresenta bons resultados em outros.

Ryan Murphy sempre costuma repetir figurinhas carimbadas no seu álbum e aqui não é diferente. Lançada pelo cineasta ao status de estrela, Sarah Paulson constrói uma envolvente Mildred Ratched em cena, dominando apenas com olhar e o silêncio de suas ações sorrateiras. A sequência em que o espectador descobre a infância e a adolescência terríveis da protagonista configura um trunfo de Paulson, que vai de uma aparente tranquilidade a um estado de total selvageria em segundos, consagrando sua força avassaladora em cena. Da mesma forma que Louise Fletcher conduziu com mãos de ferro a enfermeira no filme, Sarah honrou o legado da veterana e construiu uma grandiosa interpretação, do tipo que corre o risco de passar despercebida, mas a fórmula impede. Certamente uma escolha perfeita.

Além de Sarah, outros nomes também se destacam no enredo. Jon Jon Briones, que roubou a cena em apenas dois episódios da segunda temporada de American Crime Story, também produzida por Murphy, compõe um controverso Hanover em cena, conseguindo sustentar as camadas desse perfil. Judy Davis, intérprete da enfermeira-chefe Betsy Bucket, surge com sua língua afiada e uma personalidade irônica sem cair numa caricatura desastrosa, assim como Sharon Stone e sua exuberante Lenore, mesmo que pouco aproveitadas. Finn Wittrock, outra figurinha do universo de Ryan Murphy, funciona em alguns momentos no elenco, apesar de insosso no início. No entanto, Cynthia Nixon e Sophie Okonedo roubam totalmente a cena entre os coadjuvantes. A primeira sabe perfeitamente conduzir as dores silenciosas de Gwendolyn, enquanto a segunda traz com muita cautela as várias nuances de uma personagem com transtorno de personalidade, chegando à série apenas na metade, mas dominando tudo à sua volta. São duas grandes atrizes que, sem dúvidas, espero vê-las na próxima temporada.

Debochada, enigmática e até crítica, Ratched cumpre a premissa de envolver o espectador, principalmente pelo roteiro depois da metade e pela fotografia luxuosa que o acompanha. Aqui, vale lembrar que o ambiente colorido, diferente do filme, causou críticas, mas acredito que seja uma forma para construir a loucura que reina no local. Com um gancho misterioso e propício para espera, temos o fim de uma ótima temporada muito bem produzida. Vale a pena conferir.

 

Apenas um rapaz latino-americano apaixonado por tudo que o mundo da arte - especialmente o cinema - propõe ao seu público.

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