Crítica | As Boas Maneiras

Nota
3

O consenso do público médio é de que filmes produzidos no Brasil se resumem a “sexo e palavrão”, curtas experimentais e, principalmente, comédias de quinta categoria; quando, na verdade, além de riquíssimo em termos temáticos e estilísticos/formais, o cinema brasileiro vem crescendo significativamente em qualidade e em presença nos festivais internacionais. Nesse cenário propício, então, surge o curiosíssimo As Boas Maneiras, novo longa da promissora dupla de diretores Juliana Rojas e Marco Dutra, que estreou em 2017 no Festival do Rio.

Ambientado em São Paulo, o filme trata de Ana, uma mulher grávida que contrata a enfermeira Clara para ajudá-la com os serviços da casa durante a gestação. A relação das duas, no entanto, ganha contornos aterradores à medida que a patroa começa a ter surtos de sonambulismo. E isso é tudo que deve ser dito sobre o enredo.

Sendo o cinema de gênero, de fato, incomum no Brasil, a proposta presente em As Boas Maneiras de contar uma história de horror fabulesco dentro de um contexto social e contemporâneo é tão fascinante quanto ambicioso e original; engana-se quem pensa que o cinema nacional não é capaz de provocar tensão e terror, e este aqui não apenas prova essa capacidade como o faz sem perder de vista os demônios que nos assombram há séculos de história (êxito igualmente conquistado pelo excelente terror iraniano Sob a Sombra, de 2016).

Funcionando como peças importantíssimas nesse processo de “tema + forma”, as atuações centrais são precisas: Marjorie Estiano interpreta Ana com um equilíbrio exemplar de naturalidade, mistério e fragilidade, enquanto Isabel Zuaa, apesar do enorme distanciamento emocional causado pela introspecção da personagem, tem uma presença inegável e ganha o protagonismo da história na proporção que o filme assume seu lado fantástico. É a partir da estranhíssima interação entre as duas mulheres que se desenrolam situações facilmente reconhecíveis e outras bizarramente oníricas.

Assim como O Silêncio do Céu, suspense também dirigido por Marco Dutra, As Boas Maneiras mantém uma lógica visual extremamente cuidadosa, conferindo aos planos panorâmicos da cidade ares expressionistas e, às cenas noturnas, tonalidades azuladas, arroxeadas e esverdeadas, passando a sensação de perigo, estranhamento e desconforto. Igualmente singular é a opção por ocultar os rostos dos personagens masculinos, especialmente enquanto as duas protagonistas contracenam – e a sequência em flash back ilustrada por gravuras e pontuada por assustadores efeitos sonoros é particularmente célebre.

É tão intrigante a primeira parte de As Boas Maneiras que é indescritivelmente frustrante quando o roteiro nos introduz à sua segunda metade; toda a lógica da encenação, o tom adulto, as alegorias que deixavam tanto espaço para interpretações e o enigmático estudo de personagens são abandonados, dando espaço para um novo foco narrativo que soa como se fosse um outro filme, ou uma “parte 2” da metade anterior. É tão ineficiente essa virada no roteiro – e tão gritante a sensação de que há dois filmes em um – que ambas as partes possuem começo, meio e fim bem definidos.

O incômodo que essa passagem causa não é apenas por este “segundo momento” ser menos original e sugestivo do que o que foi concebido na primeira metade, mas porque ele se baseia em conflitos e curvas dramáticas diferentes. Aliás, falando em conflito, é chocante a dificuldade dessa segunda metade em se concentrar nos pequenos problemas e encruzilhadas que aparecem, criando uma série de pequenas ações que não levam a história adiante e prologam (ainda mais) a duração do filme.

Ao mesmo tempo, não deixa de ser admirável a ousadia da dupla de diretores em trazer à tela alguns efeitos visuais que, embora entreguem as limitações da produção, convencem perfeitamente na lógica interna – e o trabalho de maquiagem e efeitos práticos se mostra inegavelmente eficiente para essa proposta fabulesca. Deve-se admitir também que As Boas Maneiras tem consciência de sua estrutura incomum e que, desse modo, se preocupa em marcar o desfecho com imagens de impacto e desenvolve paralelos temáticos que estabelecem a unidade que o roteiro não dá conta.

E, ainda que desequilibrado, o longa de Dutra e Rojas merece o reconhecimento necessário para que fique ainda mais claro o quão longe a cinematografia nacional pode ir, tanto em gênero como em estilo. Mas um cuidado maior na organização das ideias não faz mal a ninguém.

 

De Recife (PE), Jornalista, leonino típico, cinéfilo doutrinador.

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