Crítica | Não! Não Olhe! (Nope)

Nota
4

“Aquela nuvem não se mexeu nem um centímetro”

Em uma cidade do interior da Califórnia, Otis e seu filho, OJ, estavam vivendo sua rotina normal ao treinar os cavalos do rancho Haywood’s Hollywood Horses, que trabalha oferecendo cavalos domados para aparecer em produções de TV e cinema, mas tudo muda quando surge um som estranho vindo do céu seguido de uma série de objetos de metal caindo, um deles acertando Otis e o matando. Seis meses se passam, OJ e sua irmã, Emerald, agora precisam lutar para garantir que o rancho da família não acabe falindo, perdendo cada vez mais trabalhos em Hollywood e precisando suportar as inúmeras investidas de Ricky Jupe, o dono do terreno vizinho e que está interessado em comprar o rancho para expandir seu parque temático. Em meio a todos esses problemas, uma série de eventos bizarros começam a chamar a atenção de OJ e Em, fazendo-os perceber que tem algo estranho na sombra que as vezes surge no céu a noite, no som que escutam antes de algum cavalo desaparecer misteriosamente ou nos apagões que sempre acontecem antes do som surgir, um apagão que desliga até os celulares.

Ninguém pode negar que Jordan Peele redefiniu o significado do terror na era moderna com os espetaculares Corra e Nós, filmes que traziam o terror de uma forma mais densa e disruptiva e que acabaram sendo brutalmente aclamados pela crítica mundial, sempre exaltando o racismo e o preconceito de uma forma indireta. Talvez por isso que Nope venha às telonas carregado de expectativas, prometendo ser um filme capaz de reimaginar os filmes de verão e de transformar uma invasão alienígena em um pesadelo pop, mas obvio que Peele é capaz de surpreender e entregar muito mais. Jordan faz escolhas perigosas na criação de seu filme, a começar por mudar sua abordagem das entrelinhas, deixando a questão racial e as criticas sociais muito mais subliminares do que nos filmes passados, dessa vez temos uma alegoria racial em meio aos discursos sobre apagamento histórico, a começar pelos negros, como é o caso do jóquei do primeiro exemplar de foto em movimento, que acabou sendo esquecido com o tempo, e logo essa metáfora engrandece ao abarcar os animais de cena, mostrando o quanto a pressa e a falta de tato faz, ano após ano, com que os animais de cena comecem a se tornar obsoletos e a serem substituídos por versões em CGI dos mesmos, dando uma vasta lista de motivos para mostrar o quanto é preciso cuidados na hora de usar animais e o quanto eles são essenciais.

Ao contrário dos outros filmes, que introduzem uma história antes de começar com a ação e o terror, Nope nos joga diretamente para duas cenas de ação apoteótica e só depois começa a contar sua história, nos deixando na esperança de receber informações no decorrer do longa para entender o significado de tudo que presenciamos. A metáfora nascida através de Gordy’s Home é a mais aterrorizante e angustiante, narrada através das memórias de Jupe, nos mostrando Gordy, um simples chimpanzé ator que, após um estouro de um balão no episódio que deveria retratar seu aniversario, acaba surtando e atacando todos os atores em cena. A cena, que é creditada a 1998, exemplifica a fundo os efeitos de não saber lidar com animais em cena, marca nossa mente a ferro com os perturbadores retalhos do relato e deixam uma sensação confuso nos espectadores, que vão precisar de bastante tempo para digerir todo o filme e entender melhor o que está sendo mostrado, dando a vaga impressão que tudo pode ter sido inspirado Caso Buck, onde (em 2021) um chimpanzé entrou em surto e quase matou a filha de sua dona. A cena do ataque de Gordy é coroada com um pequeno sapato flutuante, que em meio ao cenário parece não se encaixar, chamando nossa atenção para um pequeno milagre, ou como foi dito por OJ, um ‘mau milagre’, algo que se conecta diretamente com o ‘mau milagre’ do rancho, afinal, não seria um milagre que algumas moedas começassem a cair do céu? Não seria um ‘mau milagre’ percebe que uma moeda caiu em direção do olho de Otis, perfurou sua órbita e acertou seu cérebro, o matando?

Voltando a reunir Peele com Daniel Kaluuya (que protagonizou Corra), o longa constrói para o ator um personagem ético, que enxerga a paixão de seu pai e luta para manter viva sua memória, que parece ter herdado o dom do pai com os animais e que é o primeiro a enxergar que algo de errado está acontecendo, que estão enfrentando algo muito pior do que um OVNI, apesar de ter uma jornada emocional complexa, o personagem não evolui muito no decorrer da trama, ele parece apegado demais ao seu confortável mundo e só por isso começa a buscar entender o que é aquele ser e por que os cavalos estão sumindo. Uma das estrelas do elenco é Keke Palmer, que junto com Kaluuya carrega todo o enredo do filme, mas Palmer vai mais além, ela é quem começa a querer usar esse ‘mau milagre’ a seu favor, é ela quem enxerga na invasão uma forma de tentar ganhar dinheiro e salvar o sonho do pai, e é através dela que outros personagens importantes se unem ao grupo. Steven Yeun como Jupe, o Kid Sheriff, tinha muito a adicionar ao enredo, mas suas participações mais pontuais o limitam em excesso, dando até espaço para sua história ser contada, mas deixando aquela sensação de que tudo poderia ter sido melhor conectada com  o resto dos núcleos e plots. Infelizmente quem acaba ficando com menos tempo de tela é Brandon Perea, que no papel de Angel vive o técnico de vídeo que acaba se tornando um grande aliado dos irmãos, e Michael Wincott, que interpretando Antlers Holst vive o diretor experimental que acaba surgindo como melhor opção para ajudar os irmãos a registrarem esse fenômeno.

Intenso e inesperado, Não! Não Olhe! parece ser uma tentativa de Peele de sair um pouco de seu padrão e poderia até ser melhor desenvolvido se o diretor, produtor e roteirista tivesse tido um esforço maior em harmonizar todo o enredo, a mensagem e o plot. As cenas de Gordy se desprendem da trama de uma forma incomoda, apesar de ficar claro a sua importância para a mensagem do filme, ele parece ser muito desconexo da história em si, o mesmo pode ser dito da subtrama de OJ, que parece irritantemente cabeça dura quando resolve encarar o ser mesmo sem saber o que está enfrentando. A mensagem trazida pelo longa é pesada, precisa e pode até ser perturbadora, mas ela demora a se dissolver em nossa mente e não se encaixa naturalmente na proposta construída pelo filme, a fotografia do longa é espetacular e chega ao seu ápice com a sacada da nuvem, que passa despercebida àqueles que não lembram desse detalhe do trailer até que o filme cite a informação, mas peca nos extremos opostos com duas criaturas que são essenciais na proposta: de um lado temos Gordy, um macaco construído com um CGI de dar agonia de tão irreal, do outro temos o alien, com uma construção de CGI de cair o queixo de tão detalhada, palpável e fluida, é como se o macaco parece mais falso do que o ser alienígena que foi criado para o filme. Nope é uma aposta excelente, pode surpreender e até te deixar perturbado e pensativo por alguns dias, mas ainda traz rebarbas e deslizes que o impedem de ser um dos melhores trabalhos da carreira de Peele.

“Não olhe. Não olhe. Não olhe.”

 

Sonhador nato desde pequeno, Designer Gráfico por formação e sempre empenhado em salvar o reino de Hyrule. Produtor de Eventos e CEO da Host Geek, vem lutando ano após ano para trazer a sua terra toda a experiência geek que ela merece.

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