Nota
O premiado cineasta mexicano, Guillermo Del Toro, talvez seja um dos cineastas mais versáteis do cinema, algo que podemos ver através de filmes que vão de “Hellboy” a “A Forma da Água”. No seu mais novo longa, uma adaptação do conto Pinóquio, essa irreverência e sua magnitude não são diferentes. É possível perceber não só a abordagem original da história do menino de madeira, mas também a releitura e o estilo único do cineasta. E isso talvez seja o maior trunfo da narrativa.
Antes de tudo, é preciso entender que o Pinóquio de Del Toro em quase nada parece com o da Disney, mesmo que a origem ainda esteja presente na composição. Basta observar, por exemplo, o cuidado do roteiro em contextualizar a narrativa, através de uma Itália tomada por fascistas e amedrontada pelo caos. Isso por si só já é suficiente para fazer com que a animação ultrapasse o sentido voltado ao público infantil, de uma forma que não se torna um problema na condução. A ideia, muito além de discutir as aventuras de Pinóquio, é relembrar a história, como um modo de não repeti-la – afinal, o gosto amargo que o fascismo deixa nessa narrativa, ainda que de maneira não muito explícita, é crucial para transformar até mesmo o garoto de madeira no símbolo da crítica a esse período. E isso Del Toro sabe muito bem conduzir.
Nesse contexto, é interessante pontuar que o roteiro resgata a personalidade questionadora de Pinóquio e faz com que ele a use para vários fins. Um bom exemplo disso é quando o menino questiona a adoração que algumas pessoas sentem pela imagem de Jesus crucificado – “Ele também é feito de madeira, papai. Por que gostam só dele e não de mim também?”, indaga o garoto, com um semblante melancólico no rosto. A questão, ainda que pareça ingênua, não está ali à toa, pois representa a hipocrisia daquelas pessoas que perseguem, hostilizam e rejeitam Pinóquio enquanto adoram Jesus, embora a matéria-prima de ambos seja a mesma. A ideia aqui, muito mais de cutucar o posicionamento atrasado de alguns, é mostrar que se Jesus voltasse à vida e assumisse a imagem de Pinóquio, a reação desses “fiéis” não seria muito diferente.
Outra contextualização que vale a pena ser destacada é a questão do fascismo de Mussollini. É importante, nesse sentido, lembrar que Del Toro não romantiza a época, mesmo que sua abordagem seja suave. A ideia aqui é mostrar a realidade cruel, mas adaptá-la também à ótica de Pinóquio – afinal, tudo gira em torno do garoto de madeira. Nesse cenário, há tipos vilanescos que remetem à figura de Mussollini, cujas presenças estão ali basicamente como extensão da crítica social e histórica que o roteiro pretende emular. Aliás, a cena do bombardeio na igreja, logo nos primeiros minutos, é chocante na medida do possível e consegue transmitir o horror daquela época, ainda que sem aprofundar tanto. Um estudo, vale ressaltar, muito bem feito pelo referido cineasta mexicano.
Quanto mais a obra se desenrola, mais ela se engrandece, principalmente pelas mensagens que deseja oferecer ao público. A relação de Pinóquio com Gepetto, por exemplo, é construída desde o início, mostrando que o amor que o solitário carpinteiro sente pelo menino não é genuíno no começo e se torna com o passar dos tempos. É interessante, inclusive, observar que até Gepetto rejeita inicialmente Pinóquio, mas se mostra aberto a se afeiçoar por aquele garoto – e assim ocorre, de forma linda e natural. Talvez assa construção, assim como a da personalidade de ambos, seja a maior mensagem que Del Toro quer passar – e, com a absoluta certeza, ele consegue.
E o que falar da dublagem? Sabe aquele tipo de elenco que parece totalmente entrosado uns com os outros e na narrativa? Del Toro, que sempre sabe escolher nomes ótimos para a composição de suas histórias, traz aqui vozes como Cate Blanchett (numa voz surpresa como o macaco), Tilda Swinton (a fada e a Morte), Ron Perlman (o arquétipo de Mussollini) e Ewan McGregor (o grilo) enriquecem a história, cujas vozes ecoam com muita naturalidade na narrativa, sem sombra de dúvidas.
Com uma direção de arte irretocável e uma sensibilidade única, “Pinóquio” finaliza com a mesma magnitude do seu início – ou melhor, não a mesma, mas algo maior – e sabe cravar sua tocante mensagem. O final, marcado pela delicadeza da trama, rende um dos melhores momentos do cinema e consagra, novamente, Guillermo Del Toro como um dos maiores cineastas da indústria cinematográfica. E só a ideia de subverter a história, dando ares mais realistas e críticos (mas sem perder a origem), por si só já vale a experiência. Obra-prima.
Vinicius Frota
Apenas um rapaz latino-americano apaixonado por tudo que o mundo da arte - especialmente o cinema - propõe ao seu público.