Nota
O que você faria se estivesse mergulhado na bagunça que é o multiverso? Qual seria sua reação se, diante de um verdadeiro caos, você encontrasse suas várias versões em diferentes redomas? Você já se perguntou tudo isso? Ou melhor, já se imaginou dentro dessa atmosfera? Ainda que essas possibilidades sejam meramente fantasiosas, não é muito difícil imaginá-las. Afinal, o mundo consegue ser tão diverso quanto os nossos sentimentos e ninguém pode ser capaz de reduzi-los a uma só coisa, mesmo que você queira. E talvez essa seja a maior “mágica” de se viver no “mundo real”.
Dito isso, Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo é um filme que trata justamente sobre isso: a capacidade de uma pessoa encontrar diversas versões de si mesma, principalmente em um momento difícil. Aqui, conhecemos a família Wang e seus dilemas. Por mais que pareçam uma família “normal”, aos poucos entendemos que existe ali conflitos entre as pessoas, especificamente de Evelyn, a mãe, com a filha, Joy, uma jovem cuja orientação sexual não é bem vista pela matriarca. O que, nesse primeiro momento, os Daniels (dupla que dirige e roteiriza o filme e é formada por Daniel Kwan e Daniel Scheinert) desejam é justamente promover o motim do caos em que gradativamente se transforma o filme, através do confronto de gerações e ideais entre duas pessoas que, embora unidas pelo amor, se distanciam pelas diferenças. Ora, quer algo mais conflituoso do que se afastar de quem você ama apenas por causa das divergências?
Através dessa linha, os Daniels moldam gradativamente todo esse caos. Somos levados ao subconsciente dos personagens, principalmente Evelyn e Joy, e a um universo totalmente insano. A ideia aqui não é só confundir o espectador, mas também mostrar que, para que haja um recomeço, é necessário voltar ao passado e às origens – a própria noção de multiverso sintetiza tudo isso. Nesse sentido, a forma de como o roteiro usa para inserir os personagens dentro das várias versões é muito bem elaborada – desde o modo nada convencional, quando um espelho divide a face de Evelyn em várias, aos encontros, tudo tem o devido delineamento ali.
Ainda por essa jornada, é interessante observar as faces dos personagens. Aqui, o roteiro não só brinca com as diversas personalidades, mas também encontra espaço para uma certa metalinguagem – a própria ideia, por exemplo, de mostrar que Evelyn e Waymond são um casal de artistas em uma dessas versões simboliza tudo isso; a cena em que Evelyn desfila hipnoticamente por um tapete vermelho é uma das bases desse multiverso. Em todo momento, os Daniels mostram que as mesmas angústias que os personagens carregam no “mundo real” também são consideradas no multiverso – o confronto entre mãe e filha, mesmo que Joy assuma a persona sádica de Jobu Tupaki, por exemplo – e postas em destaque, algo que evidencia que, por mais que você tente escapar da realidade, suas dores e seus amores ainda o acompanham.
Nesse sentido, o roteiro percorre, cada vez mais, por um viés que tenta fazer com que Evelyn reveja suas próprias escolhas, suas frustrações e seus anseios. Afinal, ao mesmo tempo que ela se sente desvalorizada pelo marido e pela filha, não os valoriza – basta observar que esse é um dos motivos que faz com que Waymond entre com um pedido de divórcio no início – e essas relações ficam ainda mais distantes. A ideia aqui, muito além de uma mera dissecação do multiverso, é exatamente propor a humanidade desses personagens, observando a natureza de cada um e seus erros e acertos e esse talvez seja o maior trunfo da narrativa; a noção de que, embora num filme de ação que descamba para fantasia, todo aquele conflito é mais real do que se pensa – ora, atire a primeira pedra quem não tem problemas com alguém da família, por exemplo – toda aquela frustração da protagonista é justamente pelo medo de perder o “pouco” que tem: o marido, a filha e a lavanderia.
Dessa forma, a direção ágil dos Daniels sintetiza bem a energia caótica desse ambiente. Aqui, os dois cineastas ampliam bem seus planos e enquadramentos, através de um olhar que destrincha bem as relações e a natureza desses personagens, sempre com a ideia de que essas pessoas vivem um eterno conflito, independentemente do universo em que estão. Nesse sentido, a agilidade é fundamental e, por mais que corra risco de cair numa artificialidade, os Daniels não permitem que esse risco evolua a ponto de se tornar um problema real na narrativa. A batalha final, entre Jobu Tupaki e Evelyn, talvez seja o maior aspecto dessa direção habilidosa e cheia de detalhes.
Quanto às atuações, é preciso louvar que todos ali estão ótimos em cena, principalmente Michelle Yeoh, Ke Huy Quan e Stephanie Hsu. Vitoriosos merecidamente na cerimônia do Oscar, Yeoh e Huy Quan surgem em completo estado de graça como o casal Evelyn e Waymond justamente pela sintonia e pela torcida que evocam no público. Afinal, não é muito difícil simpatizar por Waymond e enxergar que existe ali um cara completamente apaixonado pela esposa, mas que não sente a reciprocidade. É interessante observar como o roteiro constrói essa relação, pois ele mostra que o erro é mútuo, já que Evelyn também não se sente valorizada como antes. É uma relação marcada por ressentimentos, mas com muito amor e carinho, o que faz com que o público perceba que um não vive sem o outro – assim como Evelyn e Joy, cuja interpretação irretocável de Stephanie Hsu simboliza bem essa sintonia. É uma família fictícia que passa muito bem a naturalidade que se pede e transmite toda a sintonia. Que elenco!
No fim, Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo mostra que ultrapassa o seu gênero e entrega uma obra tão avassaladora quanto suas atuações, através de momentos que marcam profundamente a alma de quem assiste. É uma obra que, ainda que pareça “boba”, possui mais complexidade do que se imagina, exatamente pelos temas que se propõe a discutir. Com a absoluta certeza, estamos diante de um verdadeiro marco do cinema. Obra-prima!
Vinicius Frota
Apenas um rapaz latino-americano apaixonado por tudo que o mundo da arte - especialmente o cinema - propõe ao seu público.