Crítica | A Garota Dinamarquesa (The Danish Girl)

Nota
1.5

Lili Elbe é conhecida historicamente como uma das mulheres trans a serem pioneiras na cirurgia de redesignação sexual, e a primeira a se submeter a um transplante de útero, que resultou em seu falecimento, em 1931, devido às complicações do transplante. Lili (Eddie Redmayne) era pintora e ficou bastante conhecida na Alemanha por retratar a sua esposa, Gerda Wegener (Alicia Vikander), em suas pinturas e por seu estilo característico de pintura, que condizia muito com a época do pós-impressionismo. Em 2015, o diretor Tom Hooper lançou o filme A Garota Dinamarquesa, filme que já rendeu muita controvérsia desde a época da estréia, por ter o ator cis Eddie Redmayne representando uma figura histórica para a comunidade trans.

A Garota Dinamarquesa, como um bom filme de época, tem uma excelente produção desde a sua ambientação até os figurinos, que desempenham um papel importantíssimo no enredo do filme. A Lili do filme tem como primeiras desconfianças de sua transgeneridade pelo seu interesse nas roupas de sua esposa, com o diretor usando muito os takes de câmera para ilustrar esses momentos de descoberta, onde há de certa forma uma delicadeza, a câmera acompanha os movimentos da personagem sobre os tecidos dos vestidos e das chemises. Também há uma transição da personagem em suas vestimentas, quando ela de fato começa a sua transição social, onde houve uma escolha estética de representar a Lili com roupas num estilo mais moderno que se tinha na época, e de uma certa forma para representar seu momento de transição de forma mais andrógina. Há também uma mudança do estilo da personagem a partir do momento que ela se identifica como Lili, onde ela não só passa a usar cores mais sóbrias e escuras como também a usar roupas mais maduras que também representam o amadurecimento da sua personagem.

Apesar de uma ótima produção, A Garota Dinamarquesa apresenta diversos problemas e controvérsias desde sua concepção. O filme e o diretor foram duramente criticados na época por pessoas trans, por alguns pontos principais. O primeiro na escolha do casting, já que foi escolhido um ator cisgênero para representar a Lili Elbe. O problema disso é uma prática muito conhecida hoje em dia como “Transfake”, que é a representação de pessoas trans por atores cisgêneros, e o problema disso é a falta de representação de atores trans na mídia geral. Em 2013, por exemplo, na série Orange is The New Black, a personagem Sophia Burset, interpretada por Laverne Cox, teve dois momentos: sua linha do tempo presente, onde a própria Laverne Cox a interpreta, e flashbacks do seu passado onde seu irmão gêmeo, M Lamar, interpretou a mesma personagem pré-transição. Essa dinâmica aconteceu dois anos antes do lançamento do filme, e mostra como faltou a preocupação e a sensibilidade da equipe de produção em ouvir vozes trans, visto que uma melhor representação já havia sido feita antes. Apesar disso, o ator Eddie Redmayne, que interpretou a Lili, já falou em entrevistas que hoje em dia não aceitaria mais o papel, depois de se informar mais sobre causas LGBT+.

Outro ponto que incomodou muito sobre A Garota Dinamarquesa, para a comunidade trans, foi não só o foco da história voltado para a esposa de Lili, Gerda Wegener, retratando-a como uma grande apoiadora incondicional da Lili. Muito de fato das histórias de ambas, Lili e Gerda, se perderam com o tempo e após a 2ª Guerra Mundial, portanto é incerto afirmar se Gerda se manteve mesmo ao lado de Lili, como se implica no filme, mesmo após a dissolução de seu casamento em 1930, além de que, para manter a narrativa do apoio de Gerda para Lili, o filme exclui completamente como era a relação de Lili com seu então marido, um negociante de artes francês chamado Claude Lejeune. Tanto foco na personagem da Gerda resultou em um Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante para a atriz Alicia Vikander. A relação de Lili e Gerda no filme, inclusive, coloca a Lili Elbe como incapaz de resolver seus problemas sozinha, onde ela sempre precisa depender da esposa e posteriormente de seu namorado, colocando de uma certa forma a Lili como uma figura infantilizada, o que não só é uma discordância com a história da Lili Elbe como também um desserviço narrativo por transformar a personagem numa posição de “donzela indefesa” e suprimir bastante da sua personalidade.

A Garota Dinamarquesa é um ótimo filme para nos mostrar como não representar pessoas trans no cinema. O diretor Tom Hooper teve, nesse projeto audacioso, a oportunidade de representar uma figura histórica importantíssima para a comunidade trans e não economizou em embelezar o filme para as grandes premiações da época, ele só esqueceu do principal: representar. Na infeliz escolha de elenco do ator Eddie Redmayne, que apesar de atuar muito bem, hoje concorda a importância de dar esses papéis para pessoas trans. E apesar premiada merecidamente por sua performance, a atriz Alicia Vikander tira o protagonismo da personagem da Lili pelo roteiro focar muito em como ela se sentia sobre a Lili e sobre como ela poderia apoiá-la. Lili Elbe é uma figura histórica por ter lutado por seus direitos na década de 30 e principalmente por ter sido a primeira pessoa trans a passar por um transplante de útero, que é uma cirurgia em fase experimental até os dias de hoje, e ainda assim, esse fato foi omitido do final do filme, dando a entender inclusive que a Lili faleceu por conta da cirurgia de transgenitalização, o que torna o filme um grande desserviço por não só apagar a história de pessoas trans, que já é deixada de lado por historiadores, mas também de distorcê-la para fins narrativos.

 

Ilustradora, Designer de Moda, Criadora de conteúdo e Drag Queen.

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