Nota
“Elisabeth Noelle-Neumann afirma em A Espiral do Silêncio que a responsabilidade é da mídia, por que ela traça a linha do que é socialmente aceito ou não, por que ela pode transformar preconceito em empatia, escuridão em luz e tornar o invisível visível”
Em meados de 1995, Faela Sainz resolveu fazer uma reportagem sobre travestis indo ao Parque del Oeste, um popular lugar de prostituição. Nessa reportagem, ela acabou entrevistando uma ousada prostituta que cobrava 800 dólares e era conhecida como La Veneno, foi depois dessa reportagem que a prostituta trans cheia de carisma, beleza e auto-confiança acabou sendo contratada pela TV, inciando uma crescente jornada que levou ao estrelato. Em 2006, depois de três anos de prisão, Cristina Ortiz/La Veneno está lutando para voltar ao estrelato, e seu caminho se cruza com o de um jovem estudante de jornalismo que está se descobrindo como uma mulher trans, e, mesmo sem perceber, acaba ajudando no nascimento Valeria Vegas, uma mulher que futuramente seria uma grande jornalista e escritora.
Criado em 2019, o projeto de Javier Calvo e Javier Ambrossi para a Atresmedia nada mais era do que um filme biográfico sobre a vida da polémica personalidade transgênero da TV espanhola, La Veneno, mas o que começou como uma filme foi crescendo ao ponto de virar uma série. Baseado na biografia ¡Digo! Ni puta ni santa. Las memorias de La Veneno, escrito por Valeria Vegas, a força do show aumentou ainda mais depois que anunciou Jedet Sánchez, Daniela Santiago e Isabel Torres como interpretes de Cristina Ortiz, uma escolha aplaudida pelos fãs de La Veneno, pelo fato de termos três mulheres transgêneros genuínas para interpretar uma mulher transgênero. Mas o que começa como uma biografia se transforma completamente, por que o roteiro deixa claro que não está ali para contar uma história sobre quem era Cristina Ortiz, a produção está dedicada a contar o que era A Veneno, muito mais do que uma ex-prostituta e uma mulher trans, uma inspiração para tantas outras mulheres trans que precisavam encontrar uma voz para acreditar que existia algo além da banalização e da prostituição.
“Está história é baseada nas lembranças de Cristiana Ortiz, La Veneno, e nos relatos de algumas pessoas cujas vidas ela mudou.
Como todas as lembranças, há um pouco de realidade e um pouco de ficção.
E como todas as histórias de ficção, também há uma parte profundamente verdadeira.”
O elenco que interpreta as cinco fases da vida de Cristina brilha de um jeito significativo. Daniela Santiago vive a La Veneno na casa dos 30 anos, ela é ousada, decidida, poderosa e sem papas na lingua, e Daniela consegue transpor essa personalidade explosiva para a tela de uma forma significativa, é quase como se enxergassemos a força motriz que Pepe Navarro enxergou quando viu Cristina pela primeira vez, com sua presença avassaladora e capaz de conquistar a explosão de audiência que o La Noche que cruzamos el Mississipi teve desde sua chegada. Isabel Torres vive La Veneno após a prisão, na casa dos 40 anos, quando se tornou uma mulher gorda, ultrapassada, nostalgica e sofrida, é nessa fase que Cristina e Valeria se encontram, quando a idolo está em seu pior momento, mesmo assim ela inspira a jornalista e a jornalista inspira a cantora a ressurgir das cinzas. Guille Márquez vive Joselito Ortiz, La Veneno quando era criança, uma criança que não se conformava com quem sua familia o forçava a ser, inquieta, curiosa e exploradora. Guille consegue roubar a cena a cada aparência com seu olhar doce e inocente em paralelo com suas atitudes desafiadoras e glamurosas, muitas das cenas que viralizaram da série, e atrairam muito mais público, foram as protagonizadas pelo ator mirim.
Marcos Sotkovszki vive La Veneno na adolescencia, quando tinha 13 anos e Joselito se assumiu gay, narrando o despertar sexual daquela que um dia seria a poderosa La Veneno, mas também é quem recebe a missão de expor o periodo doloroso que Joselito apanhou na rua e de sua mãe por ser quem era, onde ele precisou encontrar coragem para sair de casa e viver conforme acreditava. A passagem de tempo nos leva até Jedet Sánchez, que vive La Veneno na casa dos 20 anos, quando conheceu seu primeiro amor e a arte de ser drag, quando viajou para Tailândia e, se descobrindo trans, se transformou em Tanya, a mulher que depois seria rebatizada como Cristina Ortiz. Em paralelo com a história de La Veneno, temos a excelente atuação de Lola Rodríguez, outra atriz trans, como Valeria Vegas, mostrando todo o impacto que La Veneno têm na transição da jornalista, além de trazer para as telas todo o processo de transição dela e da escrita do livro biografico. Importante citar ainda as participações especiais de diversas pessoas que fizeram parte da jornada de Cristina como personagens secundários, como é o caso de Valeria Vegas, Faela Sainz, Pepe Navarro, Machús Osinaga e Juani Ruiz.
Claro que não da para deixar de citar dois personagens de suporte que são muito importantes na vida de La Veneno: na infância até sua saída de casa, é Manolito (Santino Cassá/Omar Banana) quem surge como seu melhor amigo, outro garotinho gay de Adra que se torna seu maior companheiro e confindente, e na idade adulta até sua morte, é Paca La Piraña quem surge como sua fiel escudeira, tanto na fase mais jovem (Desirée Rodríguez), quando se prostituia junto com ela e acabou sendo quem mais incentivou ela a seguir a carreira na televisão, quanto mais velha (quando é interpretada pela própria Paca), que foi quem a acolheu depois da prisão, lhe incentivou a se reerguer e a protegeu na sua pior fase. Com um ritmo intenso e piadas florescendo por todo enredo, a produção usa o humor para abrandar a violenta história de Cristina Ortiz, a dor de ser uma criança gay em Adra, a rejeição que sofreu por sua mãe religiosa, a luta de uma prostituta trans para sobreviver, a jornada de uma mulher trans até encontrar sua verdadeira libertação. Os flashbacks do passado de La Veneno oscilam entre momentos de puro humor e cenas dolorosas, capazes de fazer o espectador sentir a dor que moldou Joselito até ele se tornar La Veneno.
Chocante e divertida, Veneno é uma obra-prima da televisão espanhola, polêmica e ao mesmo tempo comovente, a série é exatamente como sua protagonista, intensa, quebrada e resiliente, mas mesmo assim com uma presença reluzente e graciosa. A série te faz rir, sofrer, torcer, chorar e tantas outras emoções, por que desnuda Cristina Ortiz sem puder, mostrando muito mais do que o que ela exibia nas ruas, a sua verdade mais intima, e nos colocando para nos sentirmos em seu lugar em cada uma das rebordosas que a vida lhe dá. Com atuações extremamente convincentes, principalmente a de Isabel Torres, uma direção brilhante e um roteiro impactante, a série deixa um no na gargante ao final de cada um dos oito episódios de cerca de 1h, mostrando que La Veneno pode ter tido uma vida de sucesso e alegria, mas também precisamos conhecer a vida de tristeza e dor que Cristina viveu.
“- Minha vida foi bonita?
– Foi maravilhosa.”
Icaro Augusto
Sonhador nato desde pequeno, Designer Gráfico por formação e sempre empenhado em salvar o reino de Hyrule. Produtor de Eventos e CEO da Host Geek, vem lutando ano após ano para trazer a sua terra toda a experiência geek que ela merece.