Nota
A efemeridade da vida está entre os temas mais antigos da dramaturgia e vem se tornando recorrente no cinema independente americano, especialmente entre os filmes de festival. Quando bem executadas, essas histórias podem provocar emoções genuínas no espectador e deixa-lo em constante estado de reflexão. O problema é que o esquematismo técnico de alguns cineastas renomados na área (Terrence Malick, por exemplo) deixaram muita gente descontentada com a temática, e é gratificante dizer que Lucky, apesar de fazer parte disso, é uma pequena maravilha de filme.
John Carroll Lynch, um ator de muita presença, mas que só costuma fazer papéis pequenos, estreia na direção com este drama íntimo sobre Lucky, um senhor ateu de 90 anos de idade que vive sua rotina teimosa de forma independente numa cidadezinha deserta. Somos apresentados a todos os seus pequenos hábitos caseiros – dos copos de suco separados na geladeira aos exercícios de Ioga – e também às pessoas que o cercam, que incluem David Lynch (numa excelente participação), Ron Livingston, Tom Skerritt e Ed. Begley Jr. Entre bares, lojas, pousadas e longas paisagens áridas, tudo isso faz parte não só do que circunda Lucky, mas também do que ele é, de fato, e do que ele jamais poderia se desvincular. Ao sofrer uma queda na cozinha de sua casa, Lucky se pergunta: por que alguém com uma saúde tão inacreditável para essa idade haveria de cair sem razão aparente?
Os questionamentos que aparecem na frente do personagem não surgem de maneira brusca, mas tornam-se presentes nas pequenas coisas que ele sempre fez e valorizou, e passam a perturbá-lo cada vez mais. Quando esse conflito interno vira o centro do filme (o que não demora muito), cabe ao público entender e aceitar – ou não – o tipo de narrativa que vai acompanhar. Lucky é conduzido com ritmo deliberado e sem grandes picos de estímulo, mas também extremamente convidativo; com uma trilha sonora quase à base de gaita e uma cinematografia quente que exalta o clima bucólico do cenário, ele (o filme) pede de forma gentil que nós (o público) observemos uma investigação sagaz e belíssima sobre a razão, função e destino do ser humano. E, para um diretor estreante, impressiona a capacidade de Carroll Lynch para dosar elementos cômicos oportunos e eficientes no meio de textos tão melancólicos carregados de simbologia – o cágado Presidente Roosevelt, por exemplo, é impagável.
Para que essa absorção seja plena e não se torne filosofia barata, a direção e o roteiro entendem que toda essa história tem de ser inteiramente sentida pelo protagonista, interpretado magistralmente pelo recentemente falecido Harry Dean Stanton. Grande homenagem a toda a carreira não tanto conhecida (e brilhante) do ator, o filme segue cheio de reticências os devaneios de Lucky: pouco é verbalizado sobre o que ele está sentindo e muitos dos temas com os quais o filme flerta acabam ficando à margem para interpretação do espectador.
Dentro dessa astuta proposta de reflexão – cheia de metáforas, mas sempre galgada no naturalismo – Lucky é uma experiência bem nostálgica para aquelas pessoas aficionadas pelo cinema dos anos 1970 e ao mesmo tempo fascinantemente atual para o público que está assistindo a algo assim pela primeira vez. Claro que não vai ser difícil ouvir que não há nada de fora do comum aqui, e pode ser que realmente não haja. Mas poucas coisas são mais engajantes do que fazer você achar que está vendo o óbvio e te convidar para ver novamente e, talvez, notar a beleza que só os mais sensíveis são capazes de enxergar.
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