Crítica | Pisque Duas Vezes (Blink Twice)

Nota
4

“Esquecer é um presente”

Dirigir um filme é uma tarefa repleta de desafios, especialmente quando se trata da estreia de um diretor. Porém, em Pisque Duas Vezes, Zoë Kravitz (The Batman) surpreende ao demonstrar um domínio técnico notável e uma capacidade rara de criar tensão e suspense genuínos. Ao não se arriscar em inovações desnecessárias, Kravitz entrega um thriller psicológico que, embora jogue seguro em alguns aspectos, consegue colocar o público na ponta da cadeira com uma narrativa inquietante e performances sólidas.

A trama acompanha Frida, interpretada por Naomi Ackie (I Wanna Dance With Somebody – A História de Whitney Houston), uma garçonete que, ao lado de sua amiga Jess (Alia Shawkat), consegue se infiltrar no círculo íntimo do bilionário Slater King (Channing Tatum). A atração de Frida por King é imediata e, em pouco tempo, ela se vê convidada para uma viagem à sua ilha particular. O que começa como uma experiência de luxo e diversão gradualmente se transforma em algo mais sombrio, à medida que Frida e Jess começam a perceber que nem tudo é o que parece.

Kravitz, que também co-escreveu o roteiro com E.T. Feigenbaum, não tem pressa em revelar as verdadeiras intenções de seus personagens, criando um ambiente onde o desconforto cresce de forma constante. A narrativa explora a linha tênue entre realidade e fantasia, utilizando elementos visuais e sonoros para intensificar a sensação de que algo está profundamente errado. A ilha, retratada com uma beleza estonteante pelo diretor de fotografia Adam Newport-Berra, esconde perigos que vão muito além das serpentes venenosas que deslizam pela propriedade.

Naomi Ackie rouba a cena. Frida é uma personagem complexa, que transita entre a ingenuidade e a desconfiança com uma facilidade impressionante. Ackie consegue capturar a evolução emocional de Frida de maneira tão natural que é impossível não se envolver com sua jornada. A atriz britânica já havia demonstrado seu talento em produções anteriores, mas em Pisque Duas Vezes, ela alcança um novo patamar, consolidando-se como uma das grandes promessas de sua geração.

Channing Tatum (Magic Mike), conhecido por seus papéis em comédias e filmes de ação, surpreende ao se afastar de sua zona de conforto. Seu Slater King é ao mesmo tempo encantador e sinistro, uma figura que exerce um fascínio irresistível sobre Frida, mas que claramente não é alguém em quem se pode confiar. Tatum entrega uma performance contida, que ressoa com a dualidade de seu personagem, e o coloca entre as melhores atuações do filme.

Adria Arjona, no papel de Sarah, também merece destaque. Sua personagem, que inicialmente parece ser apenas mais uma rival em potencial na disputa pela atenção de Slater, revela uma profundidade inesperada. Arjona equilibra a sensualidade de Sarah com uma força interior que a torna uma figura intrigante e complexa, deixando o público em dúvida sobre suas verdadeiras intenções até o último momento. Sua atuação, ao lado das de Tatum e Ackie, forma um pódio de performances que carregam o longa.

Zoë Kravitz demonstra em sua estreia como diretora uma compreensão aguda das expectativas do público em relação ao gênero do suspense psicológico. Ela constrói sua narrativa de forma meticulosa, utilizando a ambientação exótica da ilha como um contraste perfeito para a crescente sensação de perigo. A trilha sonora, cuidadosamente selecionada, adiciona camadas adicionais de tensão, com faixas que complementam os momentos mais intensos da trama.

O cenário da ilha particular de King também evoca a famosa Ilha de Epstein (Little Saint James), um lugar onde Jeffrey Epstein cometeu muitos de seus crimes longe dos olhos do público. No filme, a ilha de King serve como um local onde a realidade é distorcida, e as intenções do anfitrião se tornam cada vez mais sinistras. A ilha, com sua beleza superficial e segredos sombrios, simboliza o fascínio inicial e a subsequente desilusão que marcaram as vidas de muitas das vítimas de Epstein.

Ainda assim, Pisque Duas Vezes não está isento de falhas. O terceiro ato, em particular, apresenta alguns problemas de lógica interna que podem tirar o espectador mais atento da imersão. As revelações finais, embora impactantes, deixam certas questões em aberto que poderiam ter sido exploradas de forma mais satisfatória. Além disso, a representação dos personagens supostamente originários da ilha como figuras quase místicas, que parecem saber mais do que revelam, acaba sendo algo que se sente desnecessário e problemático, especialmente em um filme que aborda temas de poder e opressão.

Apesar desses deslizes, Pisque Duas Vezes é uma estreia notável para Zoë Kravitz, que demonstra ser uma cineasta promissora com uma voz única. O filme não apenas entretém, mas também convida o público a refletir sobre temas complexos, como memória, poder, opressão e a distância entre classes. Com performances poderosas e uma direção segura, este é um thriller que, mesmo com suas imperfeições, merece ser visto e discutido.

Pisque Duas Vezes se destaca como um dos thrillers mais intrigantes do ano, combinando uma narrativa envolvente com atuações marcantes. O filme, que poderia facilmente se perder nas armadilhas dos clichês do gênero, destaca-se pela maneira como explora a toxicidade masculina e os complexos jogos de poder entre seus personagens, sem deixar de lado o empoderamento feminino. Zoë Kravitz mostra que sua transição para a direção foi uma decisão acertada, e mal podemos esperar para ver o que ela nos reserva no futuro.

 

Pernambucano, jogador de RPG, pesquisador nas áreas de gênero, diversidade e bioética, comentarista no X, fã incontestável de Junji Ito e Naoki Urasawa. Ah, também sou advogado e me arrisco como crítico nas horas vagas.

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