Crítica | O Auto da Compadecida 2

Nota
3

No coração do sertão nordestino, entre histórias fantásticas e personagens que parecem saídos de um cordel, existe um universo onde o cômico e o trágico se entrelaçam. É um lugar em que a esperteza enfrenta a opressão, e o impossível se torna cotidiano nas palavras de quem vive na luta pela sobrevivência. Quando figuras icônicas retornam para escrever um novo capítulo dessa narrativa, o resultado só pode ser uma mistura irresistível de humor, crítica social e fantasia.

O Auto da Compadecida 2 é um marco do cinema brasileiro que, embora não alcance a genialidade do primeiro filme, oferece um reencontro emocionante e bem-humorado com João Grilo e Chicó, dois dos personagens mais queridos do nosso folclore moderno. Ambientado em Taperoá 20 anos após os eventos do longa original, o filme explora novas aventuras e desafios em um sertão transformado pelas mudanças culturais e políticas dos anos 1950. Selton Mello e Matheus Nachtergaele retornam com performances brilhantes, entregando a cumplicidade e o humor que eternizaram seus personagens no imaginário popular.

A trama acompanha o retorno de João Grilo à cidade, onde ele descobre que sua fama cresceu graças às histórias contadas por Chicó. Essa notoriedade os coloca no centro de uma disputa política entre o coronel Ernani (Humberto Martins), representante do coronelismo decadente, e Arlindo (Eduardo Sterblitch), dono de uma rádio que simboliza os novos tempos. A narrativa utiliza essa rivalidade para comentar temas atuais, como manipulação midiática e fake news, mantendo a sátira social que é marca registrada da obra original de Ariano Suassuna.

Outro ponto digno de nota é a maneira como o filme explora o caráter dos personagens em situações extremas, revelando suas fraquezas e virtudes de forma genuína. A dualidade moral de João Grilo e Chicó, por exemplo, continua sendo trabalhada com maestria, mostrando como a sobrevivência pode levar a decisões questionáveis, mas também a gestos de grandeza inesperada. Esses momentos são enriquecidos por diálogos afiados, que equilibram humor e profundidade, e por atuações que capturam a humanidade dos personagens, mesmo nas situações mais absurda.

O elenco de apoio é um dos pontos altos do filme, com Taís Araújo trazendo uma nova perspectiva à Compadecida e Luis Miranda se destacando como um vigarista carismático. No entanto, alguns novos personagens, apesar do talento de seus intérpretes, carecem de desenvolvimento, o que prejudica a fluidez narrativa. O roteiro, assinado por nomes de peso como Guel Arraes e Jorge Furtado, equilibra bem o humor e o drama, mas sofre com a necessidade de atender a expectativas elevadas e de incluir novos elementos.

Visualmente, o filme opta por um estilo mais fantasioso, utilizando computação gráfica e cenários estilizados que remetem ao cordel e à teatralidade. Essa escolha reforça a atmosfera mítica das histórias contadas por Chicó, especialmente nas animações em stop motion que ilustram suas anedotas. Embora essa abordagem distancie o longa da estética realista do primeiro filme, ela confere uma identidade própria à sequência.

A trilha sonora também merece destaque, complementando a narrativa com composições que evocam a cultura nordestina e amplificam o impacto emocional das cenas. Assistir ao filme em sua língua original é essencial para captar as nuances das performances e o charme único do sotaque e da linguagem regional.

Diferente de uma simples tentativa de replicar o sucesso do original, O Auto da Compadecida 2 busca criar uma nova experiência para os espectadores, aprofundando temas e expandindo seu universo. Embora a sequência seja desnecessária em termos narrativos, ela cumpre o papel de reacender o carinho do público por essa dupla icônica e de refletir sobre questões que permanecem relevantes. Reencontrar João Grilo e Chicó é como revisitar velhos amigos, cujas histórias continuam a nos fazer rir, pensar e nos emocionar

 

Pernambucano, jogador de RPG, pesquisador nas áreas de gênero, diversidade e bioética, comentarista no X, fã incontestável de Junji Ito e Naoki Urasawa. Ah, também sou advogado e me arrisco como crítico nas horas vagas.

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