Em 2019, tivemos ótimas surpresas na cena musical brasileira. Há algum tempo, a única artista brasileira que tinha um nome de peso era a Anitta. Agora, tudo isso mudou. A valorização da música nacional está cada vez em alta, inclusive há espaços para todos os gêneros: desde MPB, funk até o pop. É gêneros musicais para todos os gostos. E, no meio de tudo isso, nasceu o fenômeno Iza. Em meio a uma situação política tão complicada, ganhamos uma artista que usa sua voz e um gênero popular bastante consumido (neste caso, o pop) para falar sobre o que é importante. Foi assim que nasceu Dona de Mim, que veio para emponderar as mulheres e mostrar que o Brasil tem uma população negra gigantesca, que é esquecida e excluída diariamente.
Já me perdi tentando me encontrar
Já fui embora querendo nem voltar
Penso duas vezes antes de falar
Porque a vida é louca, mano, a vida é louca
No clipe, Iza fala sobre mulheres. Inclusive, a produção conta com a apresentação de 3 histórias: (1) uma mãe solteira; (2) uma professora que protege seus alunos; e (3) uma advogada que luta contra os preconceitos nos tribunais. Cada uma das histórias é contada com sutileza através dos vocais da cantora, com o foco no poder das mulheres como donas de suas próprias vidas.
Nos primeiros minutos do clipe, vemos a cantora em cômodos da casa e no plano de fundo temos uma mãe que cuida do seu filho. E ao longo dos minutos, percebemos a complicada rotina de ser mãe, que até algum tempo era a única atividade produtiva feminina. Em cena, vemos uma mulher alimentando um bebê, cuidado da casa, estudando com uma criança em seu colo. Durante esses minutos, a artista canta versos que nos fazem lembrar de que não dá para baixar a cabeça e desistir de algo, mesmo que a vida esteja complicada. Mesmo que a sociedade diga que lugar do mulher é na cozinha ou no lar. Ela entoa os seguintes versos: sei do meu valor e a cotação é dólar / porque a vida é louca, mano, a vida é louca. Assim, ela nos mostra que toda e qualquer mulher tem o seu valor, independente da atividade que ela exerça, seja mãe ou não.
Na segunda história do clipe, temos uma professora ministrando aula de História do Brasil. Na aula, a professora fala sobre Quilombo dos Palmares, Navio Tumbeiro (mais conhecido como Navio Negreiro) e ainda traz a informação de que no Brasil a população negra chega a 55% de toda a população brasileira. Aqui, a cantora usa um figurino parecido com um uniforme militar e está no meio de uma sala de aula em que todos os alunos são negros. No meio da aula, a música para e podemos ouvir sons de armas de fogo. Pode parecer pouco se pensarmos nos segundos em que isso acontece, mas, aqui, a cantora nos relembra algo que não podemos esquecer; afinal, esquecer de sua própria história e fazer com que ela seja revivida no futuro.
É neste momento em que a cantora entoa os seguintes versos: Me perdi pelo caminho / Mas não paro não / Já chorei mares e rios / Mas não afogo não. Deixando claro o quanto a população negra e a mulher são excluídos, mas, de novo, não dá pra desistir, para se afogar ou se perder (como ela mesma usa como metáfora). E sabe o motivo dos sons de armas de fogo? No Brasil, 74,5% das mortes têm como vítima pessoas negras. E muitas dessas mortes vêm de quem deveria nos proteger: a polícia. Uma crítica social bem forte e atual. Inclusive, levantada no filme O Ódio que Você Semeia, mas que foi boicotado no Brasil e exibido em pouquíssimos cinemas.
Na última história, vemos a cantora vestida de branco num tribunal. Na cena, percebemos um ambiente dominado por homens e as únicas mulheres presentes são a ré e uma advogada, além da própria artista. E o mais assustador é: todos os homens do júri são brancos, uma referência clara do racismo no país, que é visto por muitos como “opinião”. Aqui, além disso, também pode ser visto como uma crítica a ambientes dominados por homens, onde mulheres são questionadas acerca da sua competência.
No início da cena, ela canta os seguintes versos: já não me importa a sua opinião / o seu conceito não altera minha visão / foi tanto sim que agora eu digo não / porque a vida é louca, mano, a vida é louca. A artista traz um fato importante para o seu trabalho: a sociedade brasileira é formada pela ideia de superioridade racial. Não é à toa que a escravidão no Brasil durou 300 anos.
Na finalização do clipe, vemos a artista dividindo a cena com um coral formado somente por mulheres. Na igreja, também podemos encontrar que as mulheres das outras histórias aparecem, sorrindo e felizes. Uma representação de como a união faz a força. Todas, juntas, no mesmo lugar, elas são mais fortes e, consequentemente, mais felizes. Ali, naquele momento/lugar, não há discriminação, não há medo de uma sociedade que é racista, machista e misógina. E, nos últimos minutos, temos um coral cantando Dona de Mim a capella, um plus para quem ver o clipe até o fim. E que plus, hein, Iza!
Dona de Mim é totalmente diferente dos hits anteriores da artista, Pesadão e Ginga, mas não é menos importante. Aqui, a cantora mostrou todo o seu poder como mulher negra e fez jus a voz que tem e ao seu poder de figura pública. Mesmo tendo surgido recentemente, a Iza já mostra que nasceu para isso, para brilhar, emocionar e, mais importante, usar sua arte para nos mostrar quem de fato é: uma artista de peso e que tem muitos caminhos para trilhar.
Jadson Gomes
Universitário, revisor. E fotógrafo nas horas vagas.