Crítica | 1917

Nota
4

Apesar de ter ganho o Oscar de Melhor Filme e Direção pelo seu trabalho excepcional em Beleza Americana (1999), o cineasta britânico Sam Mendes conquistou um alcance popular muito maior em seu surpreendente trabalho em ação, com 007: Operação Skyfall (2013). O filme se tornou um dos mais queridos de toda a saga do James Bond, levando o diretor a comandar também 007 contra Spectre (2015); ainda que consideravelmente inferior ao capítulo anterior, seu prólogo célebre, filmado boa parte em um plano contínuo, curiosamente deve ter servido de ensaio para este seu ambiciosíssimo projeto.

Em 1917, acompanhamos a história fictícia – inspirada em histórias que o avô do diretor lhe contava sobre a guerra – de dois soldados britânicos encarregados de atravessar um território inimigo para entregar uma carta de seu superior ordenando o cancelamento de um ataque, a fim de evitar um massacre dos cerca de 1600 aliados. Existe um fator emocional importante nessa missão também; um dos dois jovens selecionados para a jornada, interpretado pelo muito bom Dean-Charles Chapman (mais conhecido por Game of Thrones), busca também salvar seu irmão mais velho, prestes a ir para o fronte com a tropa.

O maior risco de 1917, fotografado pelo brilhante diretor de fotografia Roger Deakins que simula um gigantesco plano-sequência, era cair na armadilha da técnica estupenda que não encontra nenhum efeito narrativo, exceto chamar atenção para sua proezas visuais. Como demonstrou em Skyfall, no entanto, Sam Mendes tem uma capacidade inata de injetar sofisticação sem soar pretensioso ou afetado, incorporando a beleza dos cenários, cores e sombras ao desenvolvimento prático da ação em si. Já no prólogo de Spectre, a justificativa narrativa não é suficientemente sólida, visto que a linguagem é abandonada antes mesmo de a cena se concretizar. Agora em 1917 há um equilíbrio muito eficaz entre essa forma ultra-exposta e um impacto sensorial mais visceral.

É como um meio termo exato entre o exagero gráfico e realista das principais cenas de Até o Último Homem (2016), de Mel Gibson, e a higienização do sangue de Dunkirk (2017), de Christopher Nolan. Mantém uma precisão cirúrgica nos enquadramentos – preservando sempre a ideia de proximidade dos atores e reforçando, assim, o perigo incessante do extra-campo – ao mesmo tempo que transmite tanto pequenas dificuldades (passar pelo arame farpado, pôr a mão num cadáver, andar na lama) quanto a sujeira do ambiente.

Assim como no filme do Nolan, o inimigo é tratado como um mal quase metafísico e onipresente; são vistos soldados, aviões e, ocasionalmente, algum confronto mais direto, mas durante a maior parte da ação o espectador é mergulhado na amplitude ameaçadora dos campos abertos ou na claustrofobia das trincheiras. E é fabuloso como o plano contínuo, por mais controlador e impecável em sua execução, ajuda a reforçar a dificuldade bem realista, por exemplo, de simplesmente chegar de A até B.

Estruturalmente 1917 apresenta algumas grandes virtudes também, especialmente na maneira como o tempo real impede respiros, mesmo quando os personagens estão em aparente segurança. Sam Mendes consegue intercalar esse crescendo da ação em uma ascensão, que funciona igual à logica de game, mas preserva intervalos cruciais que buscam a dimensão sentimental dos personagens. Apesar disso, é frustrante que o mesmo roteiro que acerta no encadeamento geográfico da ação não consiga criar qualquer tipo de contraste ao personagem que, a certo ponto, escolhe como protagonista.

A insistência nessa placidez moral intocável, que isenta o sujeito de qualquer dubiedade de caráter, soa artificial não apenas dentro de uma missão como essa, mas principalmente para um filme que, muito claramente, aspira um peso histórico que transcende seu fator de entretenimento. Isso não seria exatamente problemático caso 1917 assumisse uma lógica ininterrupta de game, abrindo mão de suas pontuais pausas dramáticas.

Acaba soando como uma espécie de compromisso de seriedade: a obrigação de filmar a ação da maneira mais abertamente espetacular possível, mas também de respeitar a carga “histórica” sem desagradar ninguém. É feliz, logicamente, que essa missão funcione a contento – algo bem impressionante por si só.

 

De Recife (PE), Jornalista, leonino típico, cinéfilo doutrinador.

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