Nota
Em meio a Guerra Fria e as diversas crises sociais da década de 1960, Elisa (Sally Hawkins), uma zeladora muda em um laboratório experimental secreto do governo, se afeiçoa a uma criatura fantástica mantida presa e maltratada no local e acaba se apaixonando perdidamente por ela. Para executar um arriscado resgate, ela recorre ao melhor amigo Giles (Richard Jenkins) e à colega de turno Zelda (Octavia Spencer).
Quando a sétima arte vai de encontro com a criatividade fantasiosa e extremamente autoral de Guillermo del Toro, uma das mentes de maior genialidade e criação para o cinema de horror/fantasia, pode ter certeza que, independente de trama inovadora, um grande filme está por vir. Pode parecer contraditório tal afirmação, mas a verdade é que o cineasta mexicano, mesmo diante de uma história com elementos já vistos em produções no passado, o que acontece em “Círculo de Fogo” e agora no indicado a 13 Oscars “A Forma da Água”, consegue encontrar um meio de realizar um filme encantador, com personagens e seus dramas, além da ambientação na qual a fantasia se passa e toda a mensagem que assimilamos com o seu desfecho.
“A Forma da Água” parte da velha premissa de “A Bela e a Fera”, quando uma moça inocente se apaixona por uma criatura considerada monstruosa e descobre que o verdadeiro horror está na ganância e maldade humana, tal como já foi visto em produções como “King Kong”, “O Corcunda de Notre Dame” e até mesmo “Edward Mãos-De-Tesoura”. A fusão entre contos de fadas e erotismo presente no longa-metragem de Del Toro é o que faz a obra se diferenciar dos clássicos citados e se aplica bem ao desenrolar da trama, apesar de, por vezes, parecer caricato até demais (o que talvez tenha sido a intenção) e até estendido demasiadamente para poder encontrar sua identidade. O filme começa com um tom estilo “Amelie Poulain”, passando para um quase musical de sapateados, tornando-se logo em seguida um suspense e, finalmente, se transformando no romance fantasioso que todos esperávamos.
Um fator problemático de “A Forma da Água” é forçar uma situação a ponto de torna-la caricata, quer seja o governo visto como vilão e querer a Criatura morta, ou os diálogos engraçados e repetitivos de Zelda (interpretada pela brilhante Octavia Spencer), o espião russo que não sabe que lado agir, além de elementos que estão no filme claramente para fazê-lo entrar para a lista de favoritos do Oscar. Tais fatores, porém, não são intensos e nada interfere na qualidade do longa-metragem, que entrega um belo desfecho e personagens bem desenvolvidos, como a protagonista Elisa (Sally Hawkins estupenda, mesmo sem pronunciar palavras), o ambicioso diretor de segurança Strickland (um caricato, mas bem convincente, Michael Shannon), o vizinho em crise e sonhador, Giles (Richard Jenkins em uma de suas melhores atuações) e, claro, a Criatura, na pele do icônico Doug Jones, esteticamente belo e curioso, o que poderia ter rendido um (perdão pelo trocadilho) “aprofundamento” melhor no passado do personagem ou sua origem, o que talvez fique para uma futura produção.
Guillermo del Toro assume o roteiro escrito pelo próprio, juntamente com a roteirista Vanessa Taylor, sempre com carinho pelo que faz, apostando no seu visual sombrio mesclado ao belo. Ponto mais que positivo também para o diretor de fotografia, Dan Laustsen, que compôs em perfeito equilíbrio diversas tonalidades de azul e verde para construir um tom apropriado ao longa. Quanto a montagem de “A Forma da Água”, há algumas cenas que pareceram fora de ordem, ou simplesmente jogadas para compor a história de um personagem que não fariam qualquer diferença ao filme; outros momentos, alguns até bonitos esteticamente, passam quase por despercebidos de tão rápidos em cena.
Entre mais acertos do que equívocos, “A Forma da Água” é mais um conto de fadas para adultos de Guillermo del Toro, não chegando a ser o mais grandioso trabalho do diretor (esse posto sempre pertencerá à “O Labirinto do Fauno”), mas com um resultado satisfatório e, acima de tudo, digno da identidade fantástica do cineasta. O filme mostra que é possível reconstruir uma história clássica acrescentando ainda mais música, romance e poesia.
Lucas Rigaud
Jornalista, crítico de cinema, fotógrafo amador e redator. Quando eu crescer, quero ser cineasta.