Crítica | A Substância (The Substance)

Nota
4.5

Em um mundo onde a juventude é vista como sinônimo de valor, a passagem do tempo pode se tornar um pesadelo silencioso, principalmente para as mulheres. A sociedade, ao impor padrões impossíveis, e a busca incessante pela beleza eterna frequentemente camufla um abismo de inseguranças e frustrações. É nesse cenário, onde o corpo feminino é tratado como mercadoria e a aparência torna-se uma prisão, que surge A Substância, dirigido por Coralie Fargeat, uma narrativa que mistura horror, ironia e crítica social em uma fábula grotesca e perturbadora sobre até onde estamos dispostos a ir para nos manter dentro dos padrões.

No centro da trama está Elisabeth Sparkle, interpretada magnificamente por Demi Moore (O Corcunda de Notre Dame). Elisabeth é uma estrela fitness na TV que, ao chegar aos 50 anos, vê sua carreira desmoronar quando é demitida com desprezo. A mensagem é clara: o valor de uma mulher, ao menos na indústria do entretenimento, está diretamente relacionado à sua aparência e juventude. Uma solução suspeitamente perfeita surge então em seu caminho na forma de “A Substância”, um medicamento milagroso que promete “extrair o melhor de você” e que seu resultado aparece na forma de Sue (Margaret Qualley), uma versão mais jovem, bonita e vigorosa de si mesma e que logo assume o lugar de Elisabeth, tanto na vida pessoal quanto profissional.

Em seu segundo longa-metragem, Fargeat, conhecida por sua estreia impactante com Vingança (2017), apresenta uma crítica feroz à obsessão com a aparência e ao culto à juventude que permeia não só Hollywood, mas a sociedade como um todo, não poupando o público ao mostrar como o envelhecimento feminino é tratado com crueldade. A troca de papéis oferece uma análise brutal sobre o ciclo de opressão em que as mulheres se encontram: uma vez que Sue surge, Elisabeth é rapidamente relegada à sombra, quase como um cadáver envelhecido que ela mesma descarta.

O que torna A Substância tão denso é como ele relaciona o envelhecimento à perda de identidade e poder. A personagem de Moore é inicialmente uma mulher confiante, mas sua autoconfiança evapora ao longo do filme à medida que sua juventude escapa de suas mãos, simbolizada por Sue. A relação entre Elisabeth e Sue é construída de maneira complexa, quase como uma rivalidade entre mãe e filha. Sue, em seu brilho juvenil, se torna a personificação daquilo que Elisabeth perdeu, criando uma dinâmica de inveja e competição. Esta luta interna é um reflexo das pressões que a sociedade impõe às mulheres mais velhas: a expectativa de que elas permaneçam jovens e atraentes, enquanto as mais jovens são rapidamente elevadas e celebradas.

O que Fargeat faz de maneira brilhante é desconstruir o mito de que a juventude traz felicidade e poder absoluto. Sue, apesar de possuir a aparência ideal, não é mais feliz ou realizada do que Elisabeth. Ela continua a sofrer com as mesmas inseguranças, agora amplificadas pela responsabilidade de manter a perfeição física. Este ciclo vicioso de autocrítica e ódio ao próprio corpo é uma constante no filme, refletindo o sofrimento de mulheres que, como Elisabeth, são forçadas a se reinventar repetidamente para se manterem relevantes em uma sociedade que glorifica a juventude a qualquer custo.

A direção de Fargeat é corajosa, misturando humor ácido com cenas de horror gráfico, criando uma atmosfera que beira o surreal. A estética oitentista, com cores fortes e exageradas, contribui para essa sensação de deslocamento, como se estivéssemos assistindo a uma versão distorcida da realidade. O trabalho visual do filme, que inclui planos detalhados e claustrofóbicos, amplifica a sensação de desconforto do público, como se estivéssemos tão presos quanto Elisabeth em seu corpo em transformação.

Outro ponto central de A Substância é a crítica ao patriarcado. Homens como Harvey (Dennis Quaid) não são retratados como vilões de maneira tradicional, mas como representantes de um sistema que valoriza as mulheres apenas por sua beleza e juventude. Harvey observa Sue com desejo, mas sua percepção de valor é superficial, algo que o filme deixa claro em momentos que beiram o grotesco. As escolhas visuais e de som de Fargeat reforçam essa crítica: somos bombardeados com imagens e sons que evocam a degradação física e emocional de Elisabeth, em contraste com a beleza artificial de Sue.

Mesmo com seu tom satírico, A Substância não é apenas uma resposta à sociedade ou à indústria do entretenimento; é também uma reflexão sombria sobre a luta interna que muitas mulheres enfrentam ao envelhecerem. Elisabeth se vê presa em um corpo que já não obedece aos padrões de beleza estabelecidos, e sua desesperada busca por juventude a leva a uma situação de autodestruição literal. No entanto, a transformação de Sue não é um renascimento, mas uma prisão. Essa dualidade é o que faz o filme de Fargeat ser tão poderoso: ele nos força a questionar até que ponto a busca pela perfeição física vale a pena e quais são os custos emocionais e psicológicos dessa busca.

No final, A Substância é um filme que provoca o espectador a olhar mais de perto para a maneira como percebemos o Feminino. Demi Moore e Margaret Qualley entregam performances brilhantes e impecáveis, mergulhando de cabeça na exploração desses temas complexos, e a direção audaciosa de Coralie faz com que essa crítica mordaz seja impossível de ignorar. Em um mundo que teme e repudia o envelhecimento, especialmente das mulheres, A Substância surge como uma voz necessária e incômoda, nos forçando a encarar as consequências de nossa obsessão por juventude.

 

Pernambucano, jogador de RPG, pesquisador nas áreas de gênero, diversidade e bioética, comentarista no X, fã incontestável de Junji Ito e Naoki Urasawa. Ah, também sou advogado e me arrisco como crítico nas horas vagas.

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