Crítica | Alice Júnior

Nota
4

“Existem corpos que você não imagina
Mulheres com pau, homens com vagina.”

Alice Júnior ficou completamente famosa depois de ficar entre as finalistas do Next Teen Top Model, agora ela é uma youtuber badalada que vive com seu pai, Jean Genet, em Boa ViagemRecife. Seu pai, que é um pesquisador da empresa Oxygen, é escolhido para estudar mais a fundo uma fruta exótica encontrada no sul, que deverá se tornar a fragrância do novo perfume de inverno da marca, o que faz pai e filha se mudarem para Araucárias do Sul, uma cidadezinha do sul do Brasil meio tradicional e completamente homofóbica. O problema é que Alice Júnior é uma garota trans, e tudo piora ainda mais pelo fato de ela precisar estudar na melhor escola da região, o Colégio Nossa Senhora da Sagrada Redenção, um rígido colégio católico.

Agora que está longe de seus amigos e de sua vida, principalmente de Pierre, seu crush que estava prestes a se tornar seu primeiro beijo, Alice precisa lutar para ocupar seu lugar num colégio completamente machista, onde se torna alvo-fácil dos ‘machos alfa’ e das invejosas de plantão. Além de tudo, Alice precisa lutar pelos direitos que já havia conquistado, como o fato de ser chamada pelo seu nome social e não pelo seu nome de batismo, para ter o direito de usar o banheiro feminino, por ser reconhecida como uma garota hetéro e não como um garoto, e para ter amigos, além de Rinoceronta (sua gata), que realmente gostem dela como ela é, uma garota que sofre bullying até dos garotos gays da escola.

Alice Junior é um filme excepcional, que trata sem filtros sobre a temática trans. Araucárias do Sul é uma cidade fictícia, mas têm em sua essência o suficiente para ser qualquer cidade do Brasil, onde o preconceito e a mente fechada acabam impedindo as pessoas de respeitarem as diferenças que existem ao nosso redor. Em Araucárias do Sul todos são fechados ao moderno por pura ignorância, e é essa ignorância que joga Alice numa experiência horrível, totalmente oposta ao que ela viveu durante seu amadurecimento. Durante o longa ficamos sabendo que Alice começou a se perceber trans quando tinha 10 anos, que foi com seu pai e sua mãe que aprendeu a entender quem realmente era, e que foi seu pai quem lutou, junto com ela, para iniciar o tratamento hormonal para que Jean Genet Júnior iniciasse sua transformação externa em Alice Júnior. Depois de crescer dentro de uma família tão receptiva, ser jogada dentro de uma sociedade tão agressiva faz com que Alice comece a questionar seus ideais.

Dirigido por Gil Baroni, e com roteiro de Luiz Bertazzo e Adriel Nizer Silva, o filme foi lançado oficialmente, em setembro de 2019, durante o Festival de Vitória, chegando, em dezembro de 2019, a ser exibido no 21º Festival do Rio, onde venceu os prêmios Felix por melhor direção e Júri Popular, a estreia internacional do longa aconteceu em fevereiro de 2020, durante o Festival Internacional de Cinema de Berlim, atingindo sua máxima popularidade a partir de Outubro de 2020, quando entrou para o catálogo da Netflix. O longa trata com bom humor as temáticas tão pesadas, e dá espaço para atriz pernambucana Anne Celestino Mota brilhar absolutamente na pele da protagonista, mostrando toda a força de Alice e toda a sua determinação para sair do seu auge, ir ao fundo da fossa, e mesmo assim ter força para lutar por seus direitos. Ao lado de Anne, com menos brilho mas ainda assim tendo uma certa significância na história, temos Emmanuel Rosset, interpretando o pai da garota, o homem vive um pai viúvo que precisou aprender a lutar as batalhas de sua filha, mesmo quando ele enxerga claramente a verdadeira identidade de Alice, ele tem uma mente aberta o suficiente para dedicar todos os seus recursos a proteger sua filha.

Um pouco a plano de fundo, temos ainda personagens chave na jornada de Alice, como é o caso de Viviane (Thaís Schier), a reporter intrometida que acaba se mostrando uma grande aliada para Alice, de Taísa (Surya Amitrano), uma garota rebelde da escola que acaba tendo um grande papel no decorrer da jornada de Alice, de Bruno (Matheus Moura), o namorado de Taísa que acaba se tornando o novo crush de Alice, e tantos outros colegas da garota, como o valentão Guilherme, o arisco Lino Neto, a popular Manoela, a surpreendente Rita Rubão, e até a riponga Marisa, mãe de Lino. Todos esses personagens são peças fundamentais para construir o cenário onde Alice se insere, um cenário que, vagarosamente, a garota foi começando a mudar, uma mudança que atinge seu apice na icônica cena da piscina na Pool Party da Manoela.

O longa é um grande respiro para a comunidade trans, levando o público a um mergulho cru nesse universo ao mesmo tempo que faz graça para deixar tudo mais leve. O filme tem tudo para ser a história daquela jovem adolescente mimada que é levada para o interior a força e precisa se transformar, transformando o ambiente junto, mas o clichê muda completamente quando o padrão é quebrado e o filme se torna tão pesado, falando sobre um assunto tão atual mas que ainda é tabu. Outro grande ponto da trama é que Alice não enxerga o fato de ser trans como um problema, ela tem problemas normais, ela é uma garota como qualquer outra, o problema é que ela acaba sendo inserida num meio que não está pronto para enxerga-la de verdade, e é nesse momento que a garota precisa transformar a mentalidade daqueles ao seu redor.

Como se não bastasse um roteiro tão cabeça, o longa ainda vai fundo na sua trilha sonora. O longa começa ao som de A Praieira, música de Chico Science e Nação Zumbi que é um hino recifense, e transita por músicas como Cheguei, de LudmillaDragão, de Karina Buhr, e Menina Veneno, de Ritchie, chegando até ao ponto da grande festa ao orgulho de Alice, que acontece ao som de músicas de cantoras drag/trans, como Gloria GrooveMc XuxuPabllo Vittar. Mesmo sendo uma produção meio limitada/amadora, a produção nos entrega um resultado bastante satisfatório, com uma linguagem teen, divertida e elucidativa, que se equilibra perfeitamente com o grande peso da temática em que se baseia.

“É ‘A’ travesti do ensino médio!”

 

Sonhador nato desde pequeno, Designer Gráfico por formação e sempre empenhado em salvar o reino de Hyrule. Produtor de Eventos e CEO da Host Geek, vem lutando ano após ano para trazer a sua terra toda a experiência geek que ela merece.

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