Crítica | Amnésia (Memento)

Nota
4

Em seu segundo longa-metragem, Christopher Nolan concretiza pela primeira vez um projeto de cinema que, posteriormente e em maior escala, viria a ser o chamariz de prestígio dos seus filmes: conceitos complicados em tramas que brincam com diferentes linhas temporais (grosseiramente conhecidos como “blockbusters cerebrais” ou, ainda pior, “filmes que fazem pensar”). Lançado em 2000, Amnésia talvez seja o casamento mais feliz de toda a obra do diretor entre esse mote narrativo de quebra-cabeça e o desenrolar do drama – aliás, ele é, provavelmente, o único verdadeiramente pleno nesse sentido.

Indicado merecidamente ao Oscar 2001 de Melhor Roteiro Original, o filme trata de um homem chamado Leonard, cuja esposa foi estuprada e assassinada em sua casa. Desde então, ele não é capaz de fazer nenhuma memória nova (suas lembranças vão somente até o dia da tragédia) e, mesmo assim, tem de encontrar o responsável. Alternando cenas em preto e branco e coloridas, Amnésia apresenta o que poderia ser uma jornada clássica do mistério policial, só que, literalmente, de trás pra frente: começando no final cronológico da trama e terminando no início dela.

Expor o porquê da razão de existir do filme ser essa escolha de montagem – também indicada ao Oscar – seria estragar boa parte do mistério. Christopher Nolan e seu irmão Jonathan Nolan, co-autor do roteiro, invertem inteligentemente a equação do suspense de maneira curiosa, visto que a graça de Amnésia não é propriamente o que vai acontecer, mas por que coisas já testemunhadas aconteceram. De um ponto de vista de puro engajamento narrativo, então, o feito é espantoso: Nolan deixa o espectador em constante estado de tensão/atenção em relação aos “capítulos isolados”, contados na ordem reversa, porque, a cada um deles, alguma informação fundamental é fornecida, seja a respeito de personagens ou de situações. E, se não dá para bater o martelo e dizer que absolutamente todas as pistas são necessárias, ao menos elas assim se fazem parecer.

Essa aparência poderia resultar num projeto meramente indulgente e pedante, simplesmente difícil demais para o espectador se envolver, no entanto – e é aí onde entra o casamento entre a forma e o conteúdo – Nolan utiliza o recurso da “anti cronologia” a fim do público se sentir tão no escuro e perdido em informações quanto Leonard. Personagens novos são inseridos frequentemente e não dá para ter certeza se eles são confiáveis ou não (e, caso não sejam, por que não?), efeito esse que Amnésia não teria condições de atingir caso fosse montado na ordem cronológica tradicional. É evidente a incapacidade de guardar na cabeça exatamente como cada cena terminou – a solução de anotar num papel ao longo da projeção arruinaria a experiência -, e isso cria não apenas uma enorme ansiedade com relação à resolução do mistério como também um intenso senso de impotência.

O uso de closes não é exatamente incomum na filmografia de Nolan, mas aqui a câmera grudada no personagem de Guy Pearce (numa interpretação apropriadamente angustiada) livra Amnésia da preocupação com a grandiloquência visual. Obviamente o fato de ser um projeto considerado pequeno para a indústria (cerca de 9 milhões de dólares) deixa a direção se ater ao estritamente necessário. A ação, portanto é imediata; não há tempo para contemplações ou divagações existenciais. O preto e branco dá conta do tom sombrio e enigmático dos blocos introdutórios, contados em ordem cronológicas, e a paleta de cores pálidas reforça o realismo daquele mundo – e é o contraste entre as duas coisas que, aliado à velocidade dos cortes, desperta a dúvida interminável do que é verdade e o que é mentira.

Ou seja, surpreendentemente não existe pompa estampada em Amnésia – como se identifica na fachada espontânea de Following (1998), no apelo emocional inócuo de A Origem (2010) ou na busca por transcendência de Interestelar (2014). Existe um conceito explorado de maneira objetiva, direta e perfeitamente funcional em suas intenções sensoriais, algo que o diretor só viria a conquistar novamente – e com ainda mais impacto – oito anos depois.

 

De Recife (PE), Jornalista, leonino típico, cinéfilo doutrinador.

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