Crítica | As Herdeiras (Las Herederas)

Nota
3

Escrito e dirigido pelo estreante em longas-metragens Marcelo Martinessi, As Herdeiras é uma coprodução do Brasil com o Uruguai, e conta a história de duas senhoras, Chela (Ana Brun) e Chiquita (Margarita Irún), que vivem juntas há décadas na casa onde Chela nasceu e agora estão tendo que se desfazer de móveis e objetos antigos da família. Quando Chiquita é presa por conta de dívidas com o banco, sua companheira fica contando apenas com a companhia da nova empregada e começa a transformar as caronas frequentes às suas vizinhas em negócio.  A certa altura a personagem principal conhece uma moça bem mais jovem que lhe desperta uma curiosidade e um desejo tão íntimo e pessoal que a desafia a ganhar mais autonomia sobre sua própria vida e vontade sobre a mesma.

Filmado com preponderância de quadros fechados e luz escassa (quase ausente), As Herdeiras se preocupa desde o começo em estabelecer a atmosfera na qual a sua protagonista está inserida; o uso de close-ups constantes e as sombras que dominam a casa são ferramentas importantes para a plateia sentir na pele o clima triste e sem cor da rotina de Chela e o som ressalta esse peso através do silêncio dos cômodos. O design da casa, aliás, é apropriadamente antigo, cheio de móveis antigos, televisores de tubo e telefones de décadas atrás.

Se por um lado a direção cria uma lógica visual que se mantém durante toda a projeção, por outro, deixa o filme esteticamente cada vez menos interessante. Teria sido muito mais interessante se Martinessi acompanhasse o arco de sua protagonista com planos variados, o que destacaria sua jornada de autodescoberta. Não quer dizer que a escuridão da fotografia seja um problema em si, não é. O problema é que essa mesma lógica de direção se aplica em praticamente todas as sequências, e levando em conta a mudança de estado de espírito e a inquietação de Chela, a cinematografia de As Herdeiras deveria ter, senão criatividade, pelo menos mais dinâmica.

Felizmente, para tudo que Martinessi deixa a desejar, a estreante Ana Brun compensa com uma interpretação sutilmente carregada, conferindo fragilidade e dependência emocional no início e pouco a pouco mais senso de autoconfiança. Brun, na verdade, consegue seguir os passos do roteiro com o mesmo realismo empregado por suas colegas de cena Margarida Irún e Maria Martins. Fica frustrante, no entanto, ver um roteiro desenvolver aparentemente tão bem a personagem central e deixar tantas ideias subaproveitadas ou simplesmente tratadas de maneira óbvia.

Um elemento curioso em As Herdeiras é a (quase) totalidade de mulheres no filme; os personagens masculinos são citados como pais ou maridos, aparecendo brevemente em segundo plano. É como se os homens da vida daquelas mulheres estivessem no seu passado – ou insignificantes no presente. No caso de Chela, as duas coisas. Mas a ideia que permanece é a descoberta de sua independência e de suas possibilidades – e tudo isso consiste em olhar para o futuro.

 

De Recife (PE), Jornalista, leonino típico, cinéfilo doutrinador.

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