Crítica | Bardo: Falsa Crônica de Algumas Verdades (Bardo: Falsa Crónica de unas Cuantas Verdades)

Nota
4.5

Bardo” talvez seja o filme mais alegórico da carreira do premiado diretor Alejandro Gonzales Iñarritú. Desde os primeiros minutos, quando observamos um homem que corre pelo deserto até voar, já se pode ter a ideia de que estamos diante não só de uma simples alegoria, mas de uma enorme metáfora da vida do próprio cineasta, um eterno sonhador entre dores e glórias. Mais do que isso, a noção de que Silverio, o tal homem voador em questão, conversa com Iñarritú, uma vez que um se torna o reflexo do outro, em meio a tantas lembranças – afinal, o mais novo longa do diretor mexicano não passa disso: um filme de memórias, independentemente se são verdadeiras ou não.

E é justamente nessa questão dúbia sobre o que é real e o que é ilusão dentro dessas memórias que o filme se baseia. Ainda que essas dúvidas estejam permeadas pelas cenas, é visível que Iñarritú pouco se importa em respondê-las – afinal, numa obra em que o subjetivo pesa mais do que a objetividade, as respostas não são importantes. Basta observar, por exemplo, que o próprio título faz referência a essa ideia de contar histórias sem se preocupar com o sentido ou a realidade delas – um “bardo”, na Europa Antiga, é o sujeito responsável por transmitir histórias e contos às pessoas, especificamente de forma oral. Ou seja, assim como nessa época, Silverio também é, acima de tudo, um exímio contador de histórias, entre sonhos e frustrações. E esse talvez seja o maior trunfo da narrativa.

Com o desenrolar da história, mais mergulhados podemos ficar no subconsciente de Silverio – ou do próprio Iñarritú, como preferir. São inúmeras cenas que fazem com que questionamos até mesmo nossas próprias existências, já que o filme também tem uma pegada existencialista. Nesse contexto, como lidar com as fantasias que pairam na nossa mente? O que fazer quando essas fantasias saltam da mente e despencam na realidade? Assim como o mitológico Ícaro sonhou tanto que criou asas e não soube lidar com elas, Silverio também se viu na mesma situação. Aos poucos, a cena do voo quase desenfreado do prólogo sintetiza um sonho que se torna pesadelo, quando o voo não corresponde às perspectivas – uma clara alusão à ideia de ganhar a vida nos Estados Unidos, mas que acaba frustrado com o tratamento recebido enquanto imigrante mexicano. Eis o mundo real nu e cru, como a própria filmografia do diretor.

Nesse sentido, Iñarritú quer lembrar para poder contar, esquecer para que possa viver e, enfim, chorar para continuar a sorrir. Ele sabe que a vida deve ser feita de paradoxos para que tudo esteja em equilíbrio. Por mais que tudo isso pareça “simples”, a jornada de seu alter-ego – podemos realmente nos referir a Silverio dessa forma? (perceba a “graça” de questionar tudo, mesmo que nem tudo tenha resposta) – expõe o contrário e mostra que há muito mais complexidade do que se imagina. Existe ali um homem que, embora assombrado por algumas escolhas do passado e também do presente, tenta se escorar num resquício de esperança – o famigerado sonho, que sempre o acompanha. Há, inclusive, autocrítica quanto a egos feridos dessas duas personas, o que demonstra que tanto Iñarritú quanto Silverio estão dispostos a rever certas escolhas. Afinal, a narrativa sempre bate nessa tecla: as escolhas feitas e as desperdiçadas, cada uma à sua forma.

Nesse contexto, o filme fica cada vez mais alegórico e aberto a diversas interpretações. Em um dado momento, inclusive, vemos um bebê que engatinha até o mar e some na água, fazendo alusão a uma vida tão passageira e a uma morte tão precoce. A cena, carregada de um forte teor melancólico, expõe mais uma frustração do protagonista, bem como a dura sensação de perda – não se sabe se é realmente perda de algo concreto ou apenas um sentimento subjetivo incutido na alma (mais uma vez, a “graça” de questionar tudo o que se passa no filme). Iñarritú, totalmente mergulhado nessa atmosfera, não poupa seu espectador e transforma tudo numa completa alegoria existencial sobre vida e morte – afinal, onde começa uma e termina o outro?

Além disso, é preciso destacar a direção fantástica de Iñarritú. Não é novidade que o cineasta gosta de enquadramentos amplos e cortes que expressam todo o sentimento estampado no rosto de seus personagens, mas é impressionante seu trabalho em “Bardo”. Aqui, os cenários abertos se tornam mais amplos do que aparentam justamente para fortalecer a intensidade e a profundidade da vida de Silverio e do quanto suas questões pessoais o acompanham. A câmera de Iñarritú sabe perfeitamente captar as sensações que essa narrativa causa, visto que ela não demoniza e também não romantiza seu protagonista – afinal, ele é um humano com falhas entre amores e rancores consigo mesmo. E isso torna o personagem mais complexo e humanizado do que se pensa, com a absoluta certeza.

Com relação às atuações, Daniel Gimenez Gacho é um assombro em cena. Seu Silverio é intenso, desbocado quando quer, humano e cheio de qualidades e de defeitos na mesma proporção. Toda essa construção poderia até cair numa apelação desnecessária, se não fosse a força de seu intérprete. Do início ao fim, vemos um verdadeiro show de Gimenez Gacho, cuja atuação é tão natural que torna tudo mais palpável e palatável – algo que até corrobora para ideia de que estamos diante de algo real, não uma ficção ou uma mera ilusão. É uma performance que, de tão simples, se torna gigante graças à força de sua naturalidade e à entrega de seu intérprete. Num mundo mais justo, o ator estaria bastante cotado nas premiações.

No fim de tudo, não temos todas as respostas que Iñarritú promove no seu longa, mas temos a certeza de que a experiência de quase 3 horas realmente vale a pena. Há, sim, alguns tropeços, mas nada que comprometa a qualidade da história. Aqui, o cineasta encontra espaço para fazer suas críticas a tudo – inclusive a si mesmo – e refletir sobre uma vida cheia de altos e baixos. Tem momentos em que se pode pensar que Silverio não passa de um alter-ego do cineasta, assim como tem outros que podem confundir o espectador, ao entender que é só um personagem sem conexão com Iñarritú. Sem sombra de dúvidas, um dos grandes do ano – não só na duração, mas também na qualidade – e um dos maiores retratos do quanto a origem é importante na vida de alguém na mesma proporção que pode criar obstáculos. Afinal, Silverio conseguiu se firmar como documentarista, mas passou por quedas e reestruturas por ser quem é: um imigrante mexicano num universo altamente xenófobo. Obra-prima.

 

Apenas um rapaz latino-americano apaixonado por tudo que o mundo da arte - especialmente o cinema - propõe ao seu público.

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