Nota
As cenas iniciais de Bela Vingança, primeiro longa escrito e dirigido pela britânica Emerald Fennell, são pensadas minuciosamente para provocar no espectador a expectativa do mal-estar. Vemos, em uma balada, uma jovem bêbada demais para sequer conseguir se levantar da cadeira, algo que um trio de rapazes percebem e um deles chega a se aproximar. O rapaz leva a moça no Uber para seu apartamento e, chegando lá, previsivelmente começa a se aproveitar do estado dela para deita-la na cama. O que o sujeito não esperava, porém, era que ela, na verdade, estivesse muito mais consciente do que parecia.
O mais interessante é que as surpresas desse roteiro, muito original, de Fennell não terminam nessa pequena – porém brilhante – subversão do rape revenge (aquele tipo de filme no qual uma mulher é estuprada e vai atrás de uma vingança sangrenta). A partir do momento em que o espectador passa a conhecer mais de Cassandra – numa interpretação superlativa de Carey Mulligan, que deve lhe render ao menos uma indicação ao Oscar 2021 -, Bela Vingança inicia um processo de desconstrução gradual do cinismo empregado nas duas sequências-chaves do primeiro ato. Algo muito significativo aconteceu no passado recente dessa personagem, que fez faculdade de medicina e, no entanto, está trabalhando numa cafeteria e ainda mora com os pais.
A princípio, o tratamento da diretora é estilizado, com um uso de cores vivas que quase transformam o filme numa versão mais crua e realista de Aves de Rapina. A música é energética e o senso de humor é afiadíssimo. Dado o pouco que vem antes, a entrada em cena do personagem vivido por Bo Burnham (que, inclusive, dirigiu o coming of age aclamado Eighth Grade, de 2018) provoca, naturalmente, uma reserva de desconfiança, que é quebrada paulatinamente pela sua feição doce e leve, descolado mas também sensível. Enquanto o público aprende aos poucos o backstory de Cassandra, à medida em que ela executa uma lista de “visitas”, as aparições do personagem de Burnham deixam o filme surpreendentemente mais esperançoso durante um tempo considerável.
A quebra na estrutura inicial inteligentemente desarma o espectador para certos desdobramentos. Era evidente que Bela Vingança não iria abandonar totalmente a força inicial da sua tese diante da sistematização do que chamamos hoje de “cultura do estupro”; a movimentação feita pelo roteiro confirma as muitas problemáticas desse tema em diferentes tipos de pessoa, o que torna o filme, aliás, extremamente abrangente. Fennell não se contém em explorar apenas um lado da moeda e apresenta o que há de pior nessa cultura, através de figuras das menos suspeitas – e o fato de boa parte da violência (ou quase toda) ficar guardada para o extracampo, é fundamental para incitar a imaginação e a percepção do público das questões levantadas pelo filme.
Bela Vingança, portanto, se mostra perfeitamente disposto a confrontar sua própria tese, tirando-se do seu lugar de conforto do cinismo inicial e abrindo-se para as possibilidades narrativas que a sua própria imprevisibilidade oferece. E, nesse trajeto, acaba revelando coisas ainda mais perturbadoras sobre seu tema do que provavelmente seria possível caso se fechasse num ideal misândrico inflexível. Ainda que o epílogo deixe no ar uma problemática difícil de explicar e cause uma das maiores frustrações dos últimos anos, é difícil de tirar da cabeça mesmo passados vários dias.