Crítica | Cafarnaum (Capharnaüm)

Nota
5

Nenhuma arte exercita a capacidade de empatia do ser humano da mesma forma que o cinema, principalmente quando este consegue transportar o espectador para uma realidade que, de outra maneira, não seria possível lhe ser proporcionada. Esse potencial de explorar experiências de perto pode ser usado de diversas maneiras e passou a ser ainda mais ilimitado com o surgimento/evolução dos efeitos especiais/visuais, mas em filmes naturalistas de menor escala, como os recentes Eu, Daniel Blake, de Ken Loach, Projeto Flórida, de Sean Baker, e agora Cafarnaum, indicado ao Oscar na categoria de Filme em Língua Estrangeira, o impacto é surpreendentemente maior.

No filme da diretora libanesa Nadine Labaki (do ótimo Caramelo), acompanhamos a tristíssima jornada de um menino chamado Zain pelas ruas de Beirute e passando pelos piores tipos de provação, tanto por conta do mundo quanto por seus próprios pais. De maneira quase documental (os atores não são profissionais e praticamente interpretam eles mesmos), e com a câmera constantemente viva, trêmula e nervosa, Labaki consegue um feito narrativo espantoso: põe o público junto àquela criança obrigando-o a vivenciar a aceleração com a qual a desgraça se desenrola na vida de um ser tão vulnerável e ao mesmo tempo já tão tragicamente maduro.

Os cortes secos e ágeis aliados ao nervosismo da ação em cena tornam tudo dolorosamente real e ainda mais imersivo, funcionando inclusive do ponto de vista simbólico (a velocidade com que o horror da miséria se instala na alma do indivíduo e todos os fundos do poço a que ela pode levar). Nenhum desses recursos funcionariam, no entanto, sem a força nas expressões corporais e faciais do extraordinário Zain Al Rafeea, cuja intensidade, fúria, tristeza, indignação, garra e até um forte instinto de proteção conseguem ser sentidos simultaneamente.

Nadine Labaki, por sua vez, entende que o coração de seu Cafarnaum está no imenso naturalismo que esse menino de apenas 12 anos, à época, é capaz de imprimir. O roteiro, por outro lado, é apropriadamente solto e parece se adaptar às situações, constantemente quebrando a estrutura padrão de três atos e oferecendo uma dinâmica de envolvimento sensorial tão brilhantemente palpável que torna-se curiosamente redondo.

Sem recorrer a recursos óbvios de melodrama e exploração das emoções da plateia, Cafarnaum choca, incomoda e emociona, sim, mas muito mais pela crueza do que pela manipulação. E é belíssimo como, apesar da consciência de que há incontáveis outras histórias assim, não dá para ficar indiferente quando ao menos uma delas é colocada na tela com tamanha sensibilidade.

 

De Recife (PE), Jornalista, leonino típico, cinéfilo doutrinador.

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