Crítica | Cidadão Kane (Citizen Kane)

Nota
5

Um dos maiores clássicos hollywoodianos, “Cidadão Kane” (1941) completa 80 anos com uma atemporalidade e um magnetismo que ainda assustam, justamente pela construção de ambos. Afinal, seu tom revolucionário no cinema e crítico na sociedade ultrapassa gerações e ressignifica o conceito linguístico da arte, desconstruindo paradigmas e recriando laços entre a ficção e a realidade com muita perspicácia e, sobretudo, cautela.

Desde o princípio, somos mergulhados na atmosfera avassaladora que Orson Welles promove na sua narrativa, através de uma sucessão de flashbacks que perturbam o protagonista Charles Kane, um garoto pobre que se torna um dos homens mais ricos da história. Nesse contexto, o paralelo entre o passado e o presente, embora corra o risco de se tornar maçante, se mostra um recurso cuidadosamente detalhista, exatamente por conectar o espectador à mente do personagem. Afinal, para que conheçamos o presente de Charles, precisamos revisitar o seu passado com uma visão crítica, mostrando os altos e baixos. Embora a narrativa seja semelhante à trajetória de William Hearst, um magnata do jornalismo, não se trata de especificamente uma biografia, mas uma releitura dos fatos e uma roupagem mais atual – mesmo no contexto da década de 40.

Nesse sentido, Welles não faz apologia à meritocracia, ainda que a história de Charles Kane seja cercada disso. O cineasta usa justamente essa questão com um tom crítico, escancarando as consequências relacionadas à sua fortuna e a seu império. Aqui, o teor didático ganha espaço e transforma esse lado numa reflexão. Quanto mais observamos o crescimento de Kane na obra, mais perto ficamos de sua persona e adentramos o psicológico do protagonista. É interessante, dentro desse aspecto, observar as mudanças de emoções dele, essencialmente quando notamos uma certa amargura mesclada com um tom debochado. Mais do que isso, Welles estabelece que há um escudo nas ações de Charles, como se ele mascarasse seus reais sentimentos. Ora, um poderoso homem de negócios de origem pobre não pode se dar ao luxo de demonstrar sua emoção – caso contrário, não haveria destaque, nem legado.

Muito além da narrativa que chama a atenção, os quesitos técnicos enriquecem a trama e sua magnitude atual assusta. A estética, por exemplo, exerce um papel fundamental no desenvolvimento, primordialmente quando funciona através da linguagem metafórica e chamativa que os roteiristas alimentam. Em um certo momento, Kane compara a sua importância à de uma lâmpada, essencialmente pela força de ambos elementos em diversas situações. Em muitos trechos, essa metáfora não vem nas atitudes ou numa forma mais palpável, mas sim em palavras e desejos que se concretizam em seguida. Tal qual a lâmpada, Charles também se ilumina e tem o dom de esvaziar o escuro por onde passa, especialmente pela atenção que recebe. Apesar do preto e branco, conseguimos visualizar o contraste entre as luzes e a escuridão, simbolizando as alternâncias de estado de espírito do protagonista.

Quanto mais a história se desenrola, mais a direção de Welles fica afiada. Os seus enquadramentos, dignos de reconhecimento, focam excessivamente não só nos rostos dos personagens, mas nos objetos simbólicos que o cercam também. Em certos trechos, existe um jogo de perspectivas que permite que as pessoas falem, enquanto um objeto recebe foco, sem perder o contexto e a importância da fala – o diretor sueco Ingmar Bergman também se tornara especialista nisso. É uma maneira que, embora simples, se torna grandiosa justamente por valorizar cada detalhe da cena, além de manter um plano de fundo extenso que capta essência de outros momentos – como se houvesse uma sobreposição de cenários. E, sem dúvidas, o roteiro extraordinário e a trilha sonora quase silenciosa contribuem fortemente para esse feito.

O trabalho de maquiagem da trama impressiona também. Afinal, recursos novos são utilizados aqui com muita cautela, essencialmente na ideia de passagem de tempo. Em muitos casos, o uso de dois atores para a interpretação de um mesmo personagem pode soar equivocado, primordialmente pela distinção das aparências. Contudo, esse não é um problema nas mãos de Welles e sua equipe, que facilitam a compreensão das mudanças de tempo e a conexão com o público. É curioso, nesse aspecto, lembrar que, mesmo envelhecido pela maquiagem, Charles Kane ainda mantém alguns traços da juventude, significando todo o valor que esse período tem na vida do protagonista. Sem sombra de dúvidas, um pioneirismo que ultrapassa gerações.

Além disso, Orson Welles assume tanto a função de dirigir, quanto de atuar no seu filme. De maneira completamente natural e humanizada, o cineasta-ator compõe um inesquecível perfil e sabe o momento certo para não deixar o papel cair numa caricatura desastrosa. Muito mais do que isso, Welles surge irônico em cena e até mesmo seu olhar fala mais do que as palavras. Embora indicado ao Oscar pela direção e pela performance, não conquistou nenhuma das estatuetas, infelizmente. Não atrás de seu colega de cena, Agnes Moorehead, intérprete da devota mãe de Charles, constrói uma figura com excelente presença e digna de atenção, principalmente pelo tom contido de sua personagem. São duas grandiosas atuações que merecem todo valor.

Um genuíno clássico e uma estonteante obra-prima, Cidadão Kane reformula o cinema e continua mais atual do que nunca. Muitos ainda bebem de sua fórmula e os resultados só evoluem. Orson Welles finaliza sua magnitude em forma de filme com muita maestria, e mostra que não é à toa que a obra possui o título de uma das melhores da história. Uma absoluta fluidez incomparável. Todos devem conferir, sem sombra de dúvidas.

“Só há uma pessoa no meu próprio caminho e essa pessoa sou eu”

 

Apenas um rapaz latino-americano apaixonado por tudo que o mundo da arte - especialmente o cinema - propõe ao seu público.

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