Nota
Entre montanhas enevoadas e vastos céus que parecem infinitos, surge uma aventura que equilibra majestade e perigo, desenhada para desafiar o impossível. No reino de Berk, onde a tradição e o combate dominam a vida dos vikings, uma descoberta inesperada ameaça transformar para sempre o coração de uma cultura. A coragem e a compaixão entram em conflito com o rigor de um povo que, até então, conhecia apenas o caminho da espada.
Em Como Treinar o Seu Dragão, acompanhamos Soluço (Jay Baruchel), um jovem viking que, apesar de ser filho do líder da aldeia, não demonstra aptidão para o combate ou para a caça de dragões — o esporte mais valoroso e respeitado entre seu povo. Quando Soluço captura e decide poupar a vida de um dragão ferido, um Fúria da Noite chamado Banguela, ele se aproxima de uma criatura que representa tanto o temido quanto o incompreendido. A relação que se forma entre o jovem e seu dragão não é apenas um laço de amizade, mas uma ruptura profunda com as convicções de Berk, levando Soluço a questionar o que realmente significa ser um viking.
A relação entre Soluço e Banguela é o coração pulsante do filme e o que o diferencia de tantas outras aventuras animadas. Ao invés de um típico enredo de herói e vilão, Como Treinar o Seu Dragão apresenta uma história de redenção mútua e entendimento. Banguela, apesar de sua aparência intimidadora, revela-se um ser sensível e leal, e através de seus gestos e expressões, ele se torna tão carismático e cativante quanto seu jovem amigo humano. A amizade entre os dois desenvolve-se de forma gradual e encantadora, e é retratada com uma sensibilidade que raramente se vê em filmes para crianças.
Visualmente falando, estamos diante de uma obra-prima. A animação é detalhada e vibrante, com uma paleta de cores que intensifica a beleza da paisagem de Berk e a variedade dos dragões. As sequências de voo são de tirar o fôlego, combinando a grandiosidade dos céus com a emoção de uma liberdade recém-descoberta. Esses momentos transportam o espectador para o mundo de Soluço e Banguela, e o uso inteligente da perspectiva faz com que cada curva, cada mergulho e cada deslize no ar seja um verdadeiro espetáculo visual.
A trilha sonora de John Powell é outro componente fundamental que eleva a narrativa. Powell entrega uma composição rica e emocionante que complementa as cenas de ação e enfatiza as nuances emocionais dos personagens. Os temas musicais de Soluço e Banguela ajudam a criar uma identidade sonora única, e as melodias épicas das cenas de voo transformam a experiência em algo quase transcendental, capturando o misto de medo e excitação que define a aventura dos protagonistas.
No entanto, o roteiro não se limita apenas à ação e à aventura. Em seu núcleo, o filme explora temas de aceitação e superação de preconceitos. A vila de Berk, que sempre tratou os dragões como inimigos mortais, precisa confrontar seus próprios medos e entender que o desconhecido não é necessariamente ameaçador. Soluço, por sua vez, aprende que seu verdadeiro valor não está em seguir as tradições de sua cultura, mas em descobrir sua própria força ao fazer o que é certo, mesmo que isso signifique enfrentar a rejeição de sua comunidade e de seu próprio pai.
Outro ponto forte do filme é a forma como ele lida com a relação entre pai e filho. Stoico (Gerard Butler), o grande chefe da vila e pai de Soluço, inicialmente, representa a mentalidade rígida dos vikings, priorizando a força e a brutalidade sobre a compreensão. Contudo, ao longo da trama, o relacionamento entre ele e Soluço passa por uma transformação genuína. É um processo de aprendizado para ambos, onde Stoico aprende a ver o mundo pelos olhos do filho e a valorizar a inteligência e a empatia como qualidades tão importantes quanto a força física.
Em relação aos personagens secundários, Como Treinar o Seu Dragão traz figuras cativantes e divertidas que enriquecem a narrativa. Astrid (America Ferrera), o interesse amoroso de Soluço, começa como uma rival, mas aos poucos compreende e aceita a nova visão dele sobre os dragões. Ela é uma personagem forte e determinada, e sua conexão com Soluço é construída com respeito mútuo, fugindo dos clichês típicos dos romances em animações. Outros vikings jovens, como Perna-de-Peixe e Cabeçaquente, trazem alívio cômico e ajudam a criar um contraste interessante com a seriedade da missão de Soluço.
A mensagem final do filme é de paz e harmonia, promovendo o respeito pelo que é diferente e o valor da amizade como um meio de superar até os obstáculos mais difíceis. O clímax do filme, repleto de ação e emoção, oferece uma resolução satisfatória e esperançosa que sublinha a importância de seguir seu próprio caminho, mesmo quando ele diverge do esperado. Como Treinar o Seu Dragão não é apenas uma animação, mas uma jornada de amadurecimento e um conto emocionante sobre como a aceitação e o entendimento podem transformar o mundo. É uma história que inspira e emociona, com um equilíbrio perfeito entre aventura e reflexão. Ao final, é difícil não se encantar com a beleza de uma amizade que transcende barreiras e com o universo criado para que ela floresça. Chris Sanders e Dean DeBlois entregam uma experiência cinematográfica envolvente e inesquecível, elevando a animação a um patamar de complexidade e profundidade digno de aplausos.
Victor Freitas
Pernambucano, jogador de RPG, pesquisador nas áreas de gênero, diversidade e bioética, comentarista no X, fã incontestável de Junji Ito e Naoki Urasawa. Ah, também sou advogado e me arrisco como crítico nas horas vagas.