Nota
Há algo de fascinante no modo como o caos e a loucura podem se entrelaçar para criar uma história ao mesmo tempo perturbadora e envolvente. Alguns filmes nos levam a questionar o que é real e o que é apenas uma projeção distorcida da mente humana. Em um mundo onde as emoções são constantemente filtradas e os comportamentos padronizados, o cinema tem o poder de abrir fendas nessa ordem estabelecida. E é dentro dessas fendas que a mente de um personagem como o Coringa floresce, nos conduzindo a territórios perigosos, onde a linha entre sanidade e delírio se dissolve completamente.
Dando sequência ao sucesso do primeiro filme, Coringa: Delírio a Dois amplia os limites do que conhecemos sobre Arthur Fleck, mas desta vez por meio de uma lente ainda mais surrealista e musical. Joaquin Phoenix retorna ao papel, não com a mesma intensidade que lhe rendeu o Oscar, mas ainda visceral, agora acompanhado por Lady Gaga no papel de Harleen Quinzel. Essa sequência se distancia do realismo opressivo que permeia todo o primeiro filme e abraça uma estética fantasiosa que nos conduz a uma Gotham City não apenas decadente, mas completamente entregue ao delírio dos seus personagens principal.
Lady Gaga, que já demonstrou sua habilidade para personagens complexos em Nasce uma Estrela, entrega uma Harleen Quinzel profundamente perturbada. Suas camadas de loucura são mostradas de forma gradual de forma que o filme sabe trabalhar essa escalada com camadas de musicalidade e loucura. É o melhor trabalho da Gaga? Com toda a certeza não, porém ainda assim é palpável sua dedicação a entregar a personagem.
O filme, em sua essência, explora a complexidade das relações humanas em meio à insanidade. Fleck, que no primeiro filme era o símbolo do isolamento e da desintegração social, aqui encontra em Harleen uma espécie de reflexo distorcido de si mesmo. Eles são duas almas quebradas que, em vez de se curarem, decidem se perder juntas em uma dança macabra de caos e destruição. A narrativa segue essa dinâmica, alternando entre momentos de ternura doentia e explosões de violência. O formato de musical, que poderia soar deslocado em um filme do universo do Coringa, aqui funciona como uma metáfora para a psique fragmentada dos protagonistas. As músicas não servem apenas para ilustrar momentos de fuga da realidade, mas para amplificar o estado emocional dos personagens, criando uma simbiose entre som, imagem e loucura.
No entanto, o que realmente diferencia Coringa: Delírio a Dois do seu predecessor é a forma como ele aborda questões sociais, particularmente a luta antimanicomial. Enquanto o primeiro filme já passeava pela negligência do Estado em relação aos marginalizados, esta sequência tenta expandir essa crítica, destacando o tratamento desumano que os considerados “incuráveis” recebem. Arkham Asylum, o famoso hospital psiquiátrico de Gotham, é retratado como uma verdadeira casa dos horrores, onde o sistema é mais punitivo do que terapêutico. O filme critica o sistema prisional que, em vez de reabilitar, desumaniza e aprofunda as feridas mentais dos pacientes.
Arthur Fleck é a personificação do colapso de um sistema que deveria proteger os mais vulneráveis, mas que os entrega à própria sorte. A negligência do Estado é visível não apenas em sua falta de tratamento adequado, mas também na forma como a sociedade lida com a doença mental, sempre optando pela exclusão e punição. Nesse sentido, o filme toca sutilmente em questões atuais, como o descaso com o sistema de saúde mental e a forma como o punitivismo permeia o sistema judiciário, criando um ciclo de sofrimento e isolamento para os mais marginalizados.
Mesmo com toda essa carga social, o filme nunca perde de vista a relação central entre Arthur e Harleen. Phoenix e Gaga tentam entregar a dinâmica perfeita, criando uma tensão palpável em cada cena. Há uma mistura de compaixão e perversidade em sua relação, como se ambos soubessem que estão destinados à destruição, mas não conseguissem evitar o caminho. E é justamente essa combinação de amor tóxico e caos que faz com que Coringa: Delírio a Dois seja mais do que uma sequência, mas uma nova visão sobre a loucura compartilhada.
Esteticamente, o filme brilha. A cinematografia de Lawrence Sher cria contrastes marcantes entre a escuridão opressiva de Arkham e as fantasias coloridas dos números musicais. As canções, que variam entre clássicos do jazz e baladas, servem como uma janela para o estado mental dos personagens. No entanto, o filme apresenta claras falhas. Em alguns momentos, o ritmo se perde, especialmente nas transições entre a realidade e os delírios musicais. Além disso, o terceiro ato pode parecer exagerado para aqueles que esperavam uma resolução mais contida. Mas talvez seja justamente essa grandiosidade que faça de Coringa: Delírio a Dois uma obra tão única. Ele não teme exagerar, não teme ser operático, porque entende que a história de Arthur Fleck é, no fundo, uma tragédia épica.
Em conclusão, Coringa: Delírio a Dois é um filme corajoso, que desafia as convenções dos filmes de quadrinhos ao mergulhar de cabeça na psique de seus personagens e nas falhas de uma sociedade que os ignora. Com atuações brilhantes de Phoenix e Gaga, e uma crítica social contundente, o filme expande o universo do Coringa de maneiras inesperadas, criando uma obra que é ao mesmo tempo perturbadora, emocionante e profundamente humana.
Victor Freitas
Pernambucano, jogador de RPG, pesquisador nas áreas de gênero, diversidade e bioética, comentarista no X, fã incontestável de Junji Ito e Naoki Urasawa. Ah, também sou advogado e me arrisco como crítico nas horas vagas.