Nota
Nos últimos anos, o racismo foi palco de algumas produções cinematográficas, numa tentativa de se aproximar da realidade. Afinal, os casos racistas cresceram demasiadamente nesse período, principalmente no seio da sociedade norte-americana, e intensificaram conflitos entre o movimento negro e os supremacistas brancos, tal qual na década de 60. Muito mais do que uma simples aproximação com o mundo real, o cinema também denuncia problemáticas sociais, e esse artifício aumenta a cada instante, a fim de buscar uma solução e justiça.
Dentro dessa ótica, “Corra” (2017) surge como denúncia contra essa mazela, através de um terror psicológico brilhantemente conduzido pelo cineasta Jordan Peele. Aqui, vemos a história de um casal interracial – Chris Washington, um negro, e Rose Armitage, uma branca – aparentemente unidos e felizes. Quando Rose decide apresentar o namorado aos familiares, em um rancho distante da cidade, a aparente união do casal é posta à prova, num eterno confronto de questões raciais.
Em todo momento, Peele procura confundir a percepção do espectador, como se algo de ruim estivesse prestes a acontecer. Seria a família de Rose tão mente aberta como a garota aparenta ser ou apenas mascaram o racismo? Apesar de tudo levar a crer na primeira opção, esse questionamento paira no ar desde o princípio, principalmente quando nos deparamos com o incômodo de Chris com a situação. Afinal, o rapaz sabe que, na condição de negro, “boas intenções” são mascaradas por racismo diariamente e até um simples pedido para conhecer os parentes brancos da namorada pode custar caro. Ficção? Não. Apenas a vida real nua e crua.
Nesse contexto, quanto mais destrinchamos as pistas e o tom crítico do filme, mais mergulhados ficamos naquela narrativa. O que há por trás da hospitalidade festiva dos sogros do protagonista? Embora demonstrem satisfação com a visita do genro, Missy e Dean transmitem uma certa artificialidade e mostram que nem tudo parece ser o que é. Mais do que isso, a divisão de pessoas no local também chama a atenção. Todos os empregados são negros e os convidados, brancos, como se houvesse uma relação submissa e de superioridade. Como podem achar normal isso?
Além dessa separação incômoda, o espectador é apresentado a negros robotizados, como se estivessem sob influência de outra pessoa, não tivessem voz e fossem meros bonecos nas mãos de seus manipuladores. Nessa perspectiva, ninguém, além de Chris, questiona essa bizarra condição – nem mesmo os anfitriões aparentemente progressistas (a fala “se eu pudesse, votaria no Obama uma terceira vez” diz muito sobre esse falso progressismo dos pais de Rose). Aos poucos, a harmonia artificial sai de cena e um ambiente obscuro e traiçoeiro entra, tal qual uma bomba prestes a explodir. Nada soa natural e tudo parece facilmente manipulado aos olhos de quem assiste.
É a deixa que Peele encontra para inserir a hipnose e o universo claustrofóbico que a prática carrega consigo. Por meio de Missy e Chris, ficamos submersos nesse método e sentimos o pavor e o desconforto que o protagonista sente, como se estivesse submisso ao poder da sogra. Quanto mais Chris se submete à influência, mais desestabilizado fica e isso permite que o espectador sinta não só a sua insegurança, mas também a verdadeira face daquelas pessoas que vivem sob aparências.
Mesmo com o foco no horror psicológico e na tensão angustiante, o roteiro ainda encontra formas de inserir um certo alívio cômico na trama. Não se trata de romantizar o tema, nem as práticas racistas que vemos em cena. Trata-se de uma suavização em alguns momentos e numa quebra da aflição, essencialmente nas conversas de Chris com seu amigo Rod Williams. Nesse sentido, a presença de Rod é curta, mas significativa. Afinal, o policial funciona como uma tentativa de consciência de Chris, como se fosse seu conselheiro – principalmente quando o rapaz alerta ao amigo o risco de conhecer a família branca da namorada. Ironicamente, o único conselho que o protagonista não seguiu se tornou real e quase custou sua própria vida.
Dito isso, a direção irretocável de Peele somente cresce na história. É impressionante seu trabalho, uma vez que sua veia na comédia é mais pulsante. Aqui, o cineasta prova seu talento versátil e consegue mesclar momentos de angústia e pânico com boas doses de sarcasmo, primordialmente quando nos deparamos com os focos nas expressões dos personagens. É justamente nessa ferramenta que mora a maior riqueza de sua visão técnica, pois percebemos as pistas só pelo olhar das figuras, como se estivessem pedindo ajuda. É uma ótica perspicaz digna de reconhecimento, como na cena da hipnose de Chris e no epílogo, com o embate entre o rapaz e a noiva.
Além disso, as atuações são fantásticas. Allison Williams constrói uma verdadeira loba em pele de cordeiro e transforma sua Rose numa criatura desprezível ao longo do enredo, enquanto Bradley Withford e Catherine Keener (principalmente) se destacam perfeitamente. Ao passo que ele surge como “bom moço”, ela encarna uma frieza assustadora, mesmo em trechos que aparenta uma amorosidade. São perfis capazes de tudo para que a ideologia seja disseminada e calculam friamente seus passos, sem transmitir confiança. Betty Gabriel (a Georgina) e Lakeith Stanfield (o Andre) também se mostram ótimos e defendem com garra seus personagens.
No entanto, o maior mérito fica a cargo do intérprete do protagonista. Impecável, Daniel Kaluuya constrói um personagem contido e observador, se destacando nas várias fases de do Chris. Do silêncio ao grito que ecoa, o jovem ator honra sua primeira nomeação ao Oscar e cria um tipo pelo qual torcemos, essencialmente na cena da hipnose. Ali, é o ápice de sua atuação magistral: aos poucos, captamos sua sensibilidade, seu desespero e seu olhar apavorante, tudo em questão de segundos. Um grande ator que, sem dúvidas, pode ser considerado um dos melhores de sua geração.
Perturbador, indigesto e extremamente crítico, “Corra” não é um filme simples, embora pareça um. Vencedor do Oscar de Melhor Roteiro Original, é uma obra capaz de desestabilizar seu público e tocar nas mais profundas feridas da sociedade, mostrando que até brancos antirracistas também podem ecoar racismo, como Missy e Dean. O quebra-cabeça, de peça à peça, é montado e o resultado impressiona, tornando um aparente inofensivo final de semana em um verdadeiro caos apoteótico. Um brilhante longa para ser visto, sentido e revisto.
“A vida pode ser uma piada de mau gosto. Um dia você está revelando as impressões na sala escura e no dia seguinte você acorda – no escuro”
Vinicius Frota
Apenas um rapaz latino-americano apaixonado por tudo que o mundo da arte - especialmente o cinema - propõe ao seu público.