Nota
Nem sempre o impacto de um filme está em como ele começa, mas sim na forma como ele nos agarra sem que percebamos. Algumas histórias se insinuam de maneira quase despretensiosa, nos deixando à vontade, apenas para, de repente, virar tudo de cabeça para baixo. A verdadeira surpresa está em como nos enganamos ao pensar que sabemos o que vem a seguir. E quando percebemos o engano, já estamos irremediavelmente envolvidos, sem chance de voltar atrás.
Desconhecidos é exatamente esse tipo de experiência. O longa, dirigido por JT Mollner, se apresenta inicialmente como mais um suspense de estrada, mas rapidamente desmonta qualquer expectativa que o público possa ter. O que começa como uma trama aparentemente simples logo se revela um jogo de reviravoltas inesperadas, conduzido por uma narrativa não linear e personagens cuja verdadeira natureza só se revela aos poucos — e da pior maneira possível. A beleza do filme está justamente em seu compromisso de desafiar o espectador, não oferecendo conforto narrativo em nenhum momento. O público é jogado no meio da ação sem uma bússola clara, e cada novo pedaço da história reconfigura nossa compreensão do que está acontecendo.
O filme acompanha uma jovem misteriosa, interpretada por Willa Fitzgerald, que surge ensanguentada e em fuga por uma paisagem desolada. A tensão é imediata: estamos ao lado dela, sentimos seu desespero e torcemos por sua sobrevivência. Kyle Gallner, por outro lado, encarna o perseguidor silencioso e ameaçador que logo ganha o apelido de “O Demônio”. A princípio, tudo sugere que estamos diante de uma clássica história de gato e rato — mas a verdade é muito mais distorcida do que qualquer sinopse poderia indicar. Essa inversão constante de expectativas dá ao filme uma energia quase cruel, onde ninguém é exatamente o que parece ser e cada cena nos faz questionar nossa própria percepção.
O maior trunfo do filme está na sua estrutura fragmentada, composta por seis capítulos exibidos fora de ordem. Cada segmento entrega uma nova peça do quebra-cabeça, forçando o público a repensar o que viu antes. É uma estratégia que evoca o estilo narrativo de Quentin Tarantino, especialmente Pulp Fiction, mas com um toque de crueldade psicológica que mantém a audiência inquieta. O diretor brinca com a nossa percepção e vira o gênero slasher de cabeça para baixo, subvertendo papéis e expectativas. Não é só uma questão de reviravoltas: é uma desconstrução do próprio modo como entendemos o terror, o suspense e, sobretudo, os protagonistas desses filmes.
Willa Fitzgerald entrega uma performance impressionante, transitando entre vulnerabilidade e uma força selvagem que desafia o espectador a rotulá-la. Seu carisma e intensidade sustentam a trama, mesmo nos momentos mais silenciosos. Cada expressão dela traz uma dualidade perigosa — ela é ao mesmo tempo frágil e predadora. Gallner, por sua vez, constrói um antagonista que vai muito além do clichê, explorando uma ambiguidade inquietante que nos faz questionar quem, de fato, está no controle. Ele não é o vilão clássico de um slasher comum. Há algo de humano e quase trágico nele, o que torna sua presença ainda mais desconfortável. O jogo entre os dois atores é de uma química estranha e hipnotizante, como uma dança violenta que não sabemos onde vai terminar.
A fotografia, assinada por Giovanni Ribisi em sua estreia como diretor de fotografia, eleva a experiência visual a outro nível. Filmado em 35mm, o longa tem uma textura quase tangível, com cores saturadas que remetem a clássicos do gênero, como Veludo Azul, de David Lynch. A estética granulada e a iluminação crua reforçam a sensação de perigo constante, enquanto os cenários de floresta e estradas desertas criam uma atmosfera sufocante e onírica. Cada quadro é pensado para criar desconforto e, ao mesmo tempo, fascínio. Ribisi demonstra uma habilidade surpreendente para compor cenas que parecem belas e grotescas ao mesmo tempo, uma dualidade visual que espelha perfeitamente o tom do filme.
O filme, no entanto, não é isento de falhas. Sua aposta em chocar o público com reviravoltas constantes pode acabar minando a profundidade dos personagens. Em certos momentos, a narrativa parece mais preocupada em surpreender do que em dar peso emocional às revelações. Algumas motivações, especialmente as da protagonista, ficam nebulosas demais, o que pode deixar parte da audiência frustrada ao tentar entender o que realmente a move. Além disso, o ritmo acelerado das reviravoltas, embora eletrizante, às vezes sacrifica o desenvolvimento de certas relações e subtramas que poderiam ter elevado ainda mais o impacto emocional da história.
Ainda assim, Desconhecidos se destaca como uma grata surpresa no gênero. É um thriller que abraça sua própria estranheza e se diverte em desconstruir nossas expectativas. A combinação de atuações intensas, direção ousada e uma estrutura narrativa pouco convencional faz com que o filme mereça ser descoberto — e discutido. Quando os créditos sobem, o público não sai com respostas fáceis, mas com a sensação de ter sobrevivido a algo visceral, perturbador e, de certa forma, deliciosamente imprevisível.
Victor Freitas

Pernambucano, jogador de RPG, pesquisador nas áreas de gênero, diversidade e bioética, comentarista no X, fã incontestável de Junji Ito e Naoki Urasawa. Ah, também sou advogado e me arrisco como crítico nas horas vagas.