Nota
A fé e o humor sempre caminharam lado a lado na cultura brasileira. Das piadas contadas entre amigos às sátiras que fazem sucesso na televisão, existe algo profundamente nosso na maneira de tratar o sagrado com irreverência. Mas o que acontece quando o próprio Criador resolve tirar férias? Essa premissa inusitada serve de base para Deus é Brasileiro (2003), dirigido por Cacá Diegues. A adaptação do conto O Santo Que Não Acreditava em Deus, de João Ubaldo Ribeiro, traz uma visão leve e cômica da espiritualidade, ao mesmo tempo em que reflete sobre a identidade e os contrastes do Brasil.
No filme, Deus, interpretado por Antônio Fagundes, decide tirar uma folga da humanidade, cansado da corrupção, da violência e da falta de moral. Para isso, Ele precisa encontrar um substituto temporário entre os santos brasileiros. Sua busca o leva ao Nordeste, onde encontra Taoca (Wagner Moura), um malandro falastrão que se torna seu guia pelas paisagens áridas e encantadoras do país. Juntos, eles embarcam em uma jornada cheia de encontros peculiares e reflexões inesperadas, acompanhados de Madá (Paloma Duarte), uma jovem que se junta à peregrinação. A partir dessa premissa, Deus é Brasileiro combina road movie e comédia para explorar questões sociais e espirituais com um olhar afetuoso.
Cacá Diegues conduz a narrativa com leveza e um toque de realismo mágico, algo que remete à tradição do cinema brasileiro em retratar o país por meio de uma ótica quase mítica. O cineasta evita o tom panfletário ou excessivamente crítico, preferindo uma abordagem lúdica que ressalta o absurdo das situações sem perder a ternura. Ao longo da viagem, a fotografia de Affonso Beato destaca as belezas naturais do Brasil, contrastando o misticismo da trama com a dura realidade social de muitas regiões retratadas. O visual do filme é uma celebração do país em sua forma mais autêntica, sem recorrer a estereótipos exagerados ou caricaturas.
Antônio Fagundes assume o papel de um Deus pragmático e até um pouco rabugento, cansado das falhas da humanidade, mas ainda assim carregado de uma certa compaixão. Sua performance equilibra autoridade e carisma, tornando crível a ideia de um Criador que resolve interagir diretamente com os mortais. Wagner Moura, por sua vez, entrega um Taoca espirituoso e cheio de malandragem, representando a figura clássica do brasileiro que improvisa para sobreviver. A química entre os dois protagonistas sustenta boa parte da trama, garantindo momentos de humor genuíno e uma dinâmica que oscila entre a cumplicidade e o choque de perspectivas.
Paloma Duarte tem menos espaço em tela, mas sua Madá traz uma doçura que equilibra as personalidades marcantes de Deus e Taoca. Sua presença adiciona um elemento mais emocional à narrativa, evitando que a história fique presa apenas na dicotomia entre o divino e o humano. Outros personagens coadjuvantes aparecem ao longo da jornada, representando diferentes faces do Brasil, desde figuras religiosas até políticos e trabalhadores comuns. Essas interações ajudam a reforçar o subtexto do filme, que se constrói como uma sátira leve das contradições nacionais.
O roteiro, escrito por Cacá Diegues e João Emanuel Carneiro, acerta ao equilibrar momentos de humor com reflexões mais profundas. A relação entre Deus e Taoca não se resume a uma sucessão de piadas; há, de fato, um diálogo sobre fé, moralidade e o destino do Brasil. Mesmo as críticas sociais são feitas de maneira acessível, sem cair no didatismo. O filme não propõe respostas definitivas, mas sugere que a solução para os problemas do país não virá de um milagre divino, e sim da própria capacidade humana de transformação. Essa mensagem ressoa especialmente em um Brasil que, duas décadas após o lançamento do longa, ainda lida com desafios semelhantes.
No entanto, Deus é Brasileiro não está isento de falhas. Em alguns momentos, o ritmo da narrativa se arrasta, e certas situações parecem se repetir sem grande impacto na história. Além disso, a figura de Deus como um ser que desconhece as mazelas do mundo pode soar um tanto ingênua para alguns espectadores. Ainda que essa abordagem sirva à proposta do filme, ela pode deixar a sensação de que o roteiro poderia ter se aprofundado mais nas questões que levanta. Apesar dessas pequenas inconsistências, o filme se mantém envolvente, sustentado pelo carisma do elenco e pelo olhar sensível do diretor.
Deus é Brasileiro se insere em uma tradição do cinema nacional que mistura o real e o fantástico para falar do país e de sua gente. Sua visão esperançosa, ainda que irônica, encontra eco em clássicos como O Auto da Compadecida, compartilhando com este a ideia de que a fé e a esperteza andam juntas no imaginário brasileiro. Embora não seja um dos filmes mais marcantes de Cacá Diegues, ele certamente ocupa um lugar especial dentro do gênero de comédia nacional, oferecendo uma perspectiva única sobre a espiritualidade e a identidade do Brasil.
No fim das contas, a pergunta que fica é: se Deus fosse brasileiro, Ele desistiria de nós ou ainda teria esperança? O filme sugere que, apesar de todas as dificuldades, sempre há algo que vale a pena ser salvo. Talvez não seja a resposta definitiva, mas, como toda boa história, Deus é Brasileiro nos convida a refletir — e, de quebra, nos faz rir no processo.
Victor Freitas
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Pernambucano, jogador de RPG, pesquisador nas áreas de gênero, diversidade e bioética, comentarista no X, fã incontestável de Junji Ito e Naoki Urasawa. Ah, também sou advogado e me arrisco como crítico nas horas vagas.