Nota
“Mookie. Vem cá, Doutor. […] Sempre faça a coisa certa!”
Em pleno verão dos anos 1980, num distrito de Brooklyn (Nova York), a população vive normalmente, lidando com o calor do dia-a-dia e com as tensões étnicas, comuns de um bairro majoritariamente de negros e habitado ainda por orientais e latinos. No centro do bairro está a tradicional Pizzaria do Sal, comandada pelo italiano e seus filhos, Vito e Pino, e onde trabalha Mookie, um negro escorregadio que alonga cada uma das entregas que recebe, causando uma intensa rixa com Pino.
Naquele bairro, onde o homem tem seu negócio há cerca de 25 anos e tem uma clientela formada completamente por negros, começam a surgir discussões e bate-bocas quando Buggin ‘Out começa a sentir incomodo pela pizzaria, que depende da clientela negra, se nega a colocar fotos de negros no Hall da Fama que preenche a parede da pizzaria e Radio Raheem começa a se sentir incomodado por Sal o proibir de ouvir suas músicas de negro dentro da pizzaria, iniciando um conflito inter-racial cada vez maior, que faz Pino expor cada vez mais seu ódio racista e Sal começar a se reter cada vez menos, soltando declarações cada vez mais racistas, expondo pensamentos racistas que parecem estar engasgados a anos em seu amago. Explodindo numa gigantesca revolta, que une negros, latinos e orientais contra as atitudes preconceituosas de Sal e da Policia, formada completamente por brancos, causando uma dolorosa consequência que tira o bairro inteiro do eixo.
Produzido, roteirizado, dirigido e protagonizado por Spike Lee, o longa pode ter algumas falhas de enredo mas não perde, em momento nenhum, a potencia exorbitante de suas vertentes. A produção inteira é construída com socos e mais socos de moral, botando o dedo profundamente na ferida e nos levando a refletir sobre a realidade tão comum àquela sociedade, ou melhor, a realidade tão comum à nossa sociedade. Lançado em julho de 1989, o filme traz questões tão duras e pertinentes que nos surpreende perceber que ele poderia ter sido lançado ontem e teria o mesmo impacto, vivemos com os mesmos problemas, as mesmas questões, as mesmas opressões e a mesma moral é preciso ser absorvida. A forma como Prefeito, Mãezona e Sorriso surgem dentro da sociedade, sendo tão marginais por suas limitações psicológicas e ao mesmo tempo tão sábios em seus singelos atos, nos deixa tocados com tantos conselhos tão simples que poderiam ser a solução para tanta dor. As rápidas inserções de Love, o radialista local, impondo paciência, amor e compreensão é inspiradora, ele surge como alivio emocional na trama, nos fazendo entender o quanto as questões de Radio e Buggin, apesar de parecerem tão superficiais, são muito mais profundas, não é uma foto ou uma música que está incomodando, é a ideia por trás da liberdade de ouvir o que quiser e de se ver representado num ponto tão tradicional.
A morte de Radio é a faísca que inicia o ato final e é o ponto mais doloroso da trama, ver o quanto uma simples discussão bairrista pode tomar proporções incontroláveis, o quanto a força policial pode ser incompreensível e o quanto é doloroso ver aquele negro morrer sufocado nas mãos do homem que deveria estar lhe defendendo. Spike Lee foi cru em sua ideia, trazendo uma realidade sem maquiagem que deveria ter ficado para trás há anos, que nos leva a presenciar a população gritando pela vida do doce homem, que nos força a ver os policias em choque, chutando o homem e ordenando que ele se levante e pare de fingir que está morto, cenas frias que causam um impacto imediato, que no longa é representado por Mookie, que congela por uns instantes e se torna o primeiro a iniciar a violenta manifestação que destrói o simbolo da opressão naquela comunidade: a pizzaria.
Com a presença de Samuel L Jackson, Frankie Faison, Giancarlo Esposito, Ossie Davis, Ruby Dee e Bill Nunn, fica claro o quanto temos um elenco formado por nomes que, orgulhosamente, figuram entre os maiores ícones negros dos cinemas, sendo ainda este o filme de estreia de lendas como Martin Lawrence e Rosie Perez. Mas não é só dos negros do filme que ficamos orgulhosos, Richard Edson pode não ter tanto destaque no papel de Vito, mas o Pino de John Turturro serve como cruz ideal para antagonizar discretamente o decorrer do filme e o Sal de Danny Aiello chama a atenção completamente, trazendo uma evolução indescritível, que faz o ator regredir em favor do elenco, iniciando o longa completamente sem preconceitos grandiosos e sendo descascado a cada cena, expondo aos poucos mensagens de tolerância ao mesmo tempo que seus ideais racistas vão ficando mais visíveis. Vemos que Sal tem respeito por aqueles que o bancam, mas é uma tolerância necessária e não espontânea, o que vai vagarosamente o transformando no vilão que ele se torna no longa.
A frase de Prefeito martela em nossas cabeças em vários momentos do desenrolar da trama, nos fazendo vigiar os atos de Mookie e refletir se ele está fazendo a coisa certa. Mookie está fazendo a coisa certa em proteger seu patrão o tempo todo ao invés de incentiva-lo a se integrar à sociedade? Mookie está fazendo a coisa certa ao se contentar com um emprego tão incomodo? Mookie está fazendo a coisa certa ao repreender sua irmã quando Sal começa a dar em cima dela? Mookie está fazendo a coisa certa em só assistir aquela briga? Mookie está fazendo a coisa certa ao jogar aquela lata de lixo na vitrine? Até onde nossos atos são certos e até onde estamos sendo passivos demais frente a vida? Até onde a violência é a melhor resposta? É baseada nessa última pergunta que o longa traz em seu epilogo frases de Martin Luther King, Jr. e Malcolm X, que nos leva a refletir até onde a violência é a melhor resposta. Hoje, em 2020, é chocante ver o quanto a cena de morte de Radio é exatamente igual ao que vimos acontecer a George Floyd e Eric Garner, coisa que foi destacada pelo próprio Spike Lee, nos levando a refletir sobre quanto tempo mais a sociedade vai precisar para aprender a fazer a coisa certa.
“A mão esquerda arma a maior encrenca… A mão direita, amor, está liquidada… Mas aguentem aí, parece que a mão direita está começando a reagir […] Uma direita fantástica, o ódio se ressente… A mão esquerda, ódio, é nocauteada pelo amor.”
Icaro Augusto
Sonhador nato desde pequeno, Designer Gráfico por formação e sempre empenhado em salvar o reino de Hyrule. Produtor de Eventos e CEO da Host Geek, vem lutando ano após ano para trazer a sua terra toda a experiência geek que ela merece.