Crítica | Fúria Primitiva (Monkey Man)

Nota
4.5

Quem se sente órfão da franquia John Wick desde o último filme lançado, poderá ficar bem servido ao adentrar no mundo sombrio e visceral de Fúria Primitiva, o aguardado filme de estreia como diretor de Dev Patel (A Lenda do Cavaleiro Verde). Nesta jornada cinematográfica, Patel não apenas assume as rédeas da direção e roteiro, mas também brilha como o protagonista em uma narrativa repleta de ação, vingança e profundidade não apenas por puro entretenimento, mas também levantando questões sociais e políticas, enraizadas na cultura indiana.

Fúria Primitiva mergulha em um enredo intrincado, centrado em torno de Kid, ou Bobby para alguns, interpretado por Dev Patel, um lutador clandestino que busca vingança pela morte brutal de sua mãe e pela destruição de sua comunidade, tecendo uma história complexa e envolvente, que se desenrola nas ruas caóticas de uma cidade segredada entre os poderosos e os marginalizados. Com reviravoltas emocionantes e cenas de ação intensas, o filme mantém os espectadores à beira de seus assentos enquanto acompanham a explosão de fúria de quem se reprime atrás de uma máscara social.

No cerne deste filme, encontramos o mito de Hanuman, o Deus Macaco da mitologia hindu. Este não é apenas um elemento decorativo, mas sim um fio condutor que entrelaça a narrativa, conferindo-lhe uma dimensão espiritual e transcendental. Hanuman, com sua força, inteligência e devoção, personifica não apenas a busca do protagonista pela vingança, mas também sua jornada em direção à iluminação espiritual. O filme a todo instante traça os paralelos entre Kid e Hanuman, fazendo questão de demonstrar que ali se faz presente toda a história do mito sob outro olhar.

Assim como Hanuman, o protagonista de Fúria Primitiva enfrenta desafios aparentemente insuperáveis, tanto físicos quanto emocionais. Para os fãs de One Piece e suas inspirações, também poderão visualizar paralelos a cada instante a medida que Kid tem seu coração cada vez mais entregue as batidas frenéticas como tambores do seu coração. Sua busca por justiça é mais do que uma simples busca por vingança: é uma jornada em direção à redenção e à transcendência. O filme nos lembra que, mesmo nas profundezas da escuridão, há sempre uma centelha de luz que pode nos guiar para fora das sombras e atingir a luz do Sol.

Além mística relacionada a Hanuman, o longa também aborda de maneira significativa o papel das hijras, a comunidade conhecida como terceiro gênero na Índia. Essas personagens desempenham um papel crucial, oferecendo não apenas apoio físico, mas também espiritual e emocional na jornada de Kid. Na mitologia hindu, as hijras têm uma presença ambígua e multifacetada. Elas são frequentemente associadas a divindades como Shiva, que representa a união dos princípios masculino e feminino. Como tal, as hijras são vistas como detentoras de poderes especiais e capacidades espirituais, capazes de transcender as barreiras de gênero e servir como intermediárias entre os reinos humano e divino.

O filme faz questão de mostrar as hijras são uma comunidade marginalizada e oprimida na Índia atual, mas também como uma fonte de sabedoria e compaixão. Além disso, as hijras desafiam as normas de gênero e sexualidade, subvertendo as expectativas sociais e culturais e demonstrando uma visão mais ampla e inclusiva do que significa ser humano. Ao explorar esse papel, Patel não apenas enriquece sua narrativa com elementos de mitologia e folclore, mas também lança luz sobre questões contemporâneas de identidade de gênero, discriminação e marginalização para além do contexto eurocentrico. Ao destacar a importância e a dignidade dessa comunidade, o filme convida o espectador a questionar suas próprias crenças e preconceitos, promovendo uma maior compreensão e aceitação da diversidade humana.

Desde os primeiros momentos do filme, é evidente que Patel não se contenta em seguir os passos convencionais do gênero de ação. Em vez disso, Fúria Primitiva não é apenas mais um conto de vingança, é uma exploração profunda das desigualdades sociais e das complexidades culturais da Índia contemporânea. Patel não hesita em confrontar temas como corrupção, opressão e marginalização, utilizando a narrativa de ação como um veículo para transmitir uma mensagem mais profunda. No que diz respeito à direção, Patel demonstra uma habilidade notável em criar sequências de ação intensas e visualmente impressionantes. As cenas de luta são coreografadas com maestria, capturando a agilidade e a ferocidade do protagonista enquanto ele luta contra seus inimigos. No entanto, é nas pausas entre as cenas de ação que o filme realmente brilha, permitindo momentos de reflexão e desenvolvimento de personagens que acrescentam profundidade à narrativa.

O cenário da cidade serve como um personagem por si só, proporcionando uma ambientação rica e autêntica para a história. A cinematografia habilidosa destaca os contrastes entre os diferentes estratos sociais, enquanto as locações reais dão uma sensação de autenticidade e imersão. Patel não hesita em explorar os recantos mais sombrios e decadentes da cidade, proporcionando um vislumbre da vida nas margens da sociedade indiana.

No geral, Fúria Primitiva é uma conquista impressionante e ambiciosa. Patel demonstra um talento singular como diretor e protagonista, criando um filme que não apenas empolga e entretém, mas também desafia e provoca. Com uma mistura de ação emocionante, temas sociais relevantes e uma pitada de mitologia indiana, este é um filme que certamente deixará uma marca duradoura no cenário cinematográfico. Não apenas um filme de entretenimento, mas uma experiência cinematográfica que desafia as convenções e transcende os limites do gênero.

 

Pernambucano, jogador de RPG, pesquisador nas áreas de gênero, diversidade e bioética, comentarista no X, fã incontestável de Junji Ito e Naoki Urasawa. Ah, também sou advogado e me arrisco como crítico nas horas vagas.

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