Crítica | Grande Sertão [2024]

Nota
1.5

Grande Sertão, dirigido por Guel Arraes, surge como uma tentativa audaciosa de adaptar a obra-prima literária de Guimarães Rosa para as telas do cinema. No entanto, essa adaptação enfrenta uma série de desafios que comprometem sua eficácia e fidelidade ao espírito original da obra, falhando em capturar a essência profunda e complexa do Grande Sertão: Veredas.

O filme transporta a trama do sertão para uma comunidade futurista situada no eixo Rio-São Paulo, apresentando uma visão distópica e teatral do universo criado pelo autor. A história gira em torno de Riobaldo, interpretado por Caio Blat, um professor que se vê envolvido em conflitos de poder, amor e identidade em meio à paisagem hostil do Complexo do Sertão. Ao reecontrar Diadorim, vivido por Luísa Arraes, Riobaldo enfrenta desafios que colocam à prova sua coragem, lealdade e moralidade. Com uma narrativa poética e densa, Grande Sertão busca explorar os dilemas existenciais e as questões sociais presentes na obra original, tentando oferecer uma visão contemporânea do clássico literário.

Uma das falhas mais contundentes ao filme é sua decisão de deslocar a história do sertão brasileiro para uma favela distópica no estilo eixo Rio-São Paulo. Essa mudança radical de cenário não apenas distorce a ambientação original da obra de Guimarães Rosa, mas também subverte suas raízes culturais e geográficas. Ao fazer isso, o filme perde a oportunidade de explorar as nuances e complexidades da vida no interior do Brasil, optando por uma abordagem superficial e estereotipada da realidade social e cultural do país no mesmo recorte de sempre já transportado para as telas.

Além disso, a escolha de retratar o universo sertanejo como uma comunidade futurista em uma grande cidade não apenas ignora a riqueza e a profundidade do cenário original, que poderia sim ser adaptado segundo a visão distópica pretendida, mas também enfraquece o impacto emocional da história e sendo só mais do mesmo para esse tipo de narrativa. A transposição da narrativa para um contexto urbano distópico resulta em uma perda de autenticidade e identidade, tornando difícil para o espectador se conectar verdadeiramente com os personagens e suas jornadas.

Outro aspecto problemático do filme é a forma como ele lida com questões de gênero e sexualidade, especialmente no que diz respeito ao personagem de Diadorim. Enquanto na obra original de Guimarães Rosa, Diadorim é um personagem complexo e multifacetado que desafia as normas de gênero e sexualidade, na adaptação cinematográfica ele é reduzido a estereótipos rasos e unidimensionais. A falta de profundidade e nuance na representação de Diadorim é um exemplo claro do fracasso do filme em capturar a riqueza e a complexidade dos personagens de Guimarães Rosa.

Além disso, a estrutura narrativa do filme é confusa e pouco coesa, com a história se desenrolando de forma fragmentada e desarticulada. As transições entre cenas são abruptas e desorientadoras, dificultando a compreensão do enredo e minando o fluxo narrativo. Isso resulta em uma experiência cinematográfica frustrante e desarticulada, que deixa o espectador se sentindo desconectado e desinteressado pela história.

No que se refere às performances dos atores, Grande Sertão apresenta uma gama de atuações que variam em qualidade e impacto. Um defeito que todos compartilham é a de seus sotaques forçados e que ficam mais gritantes ao declamar o texto poético e teatralizado, mas nenhum deles é mais gritante do que o de Caio Blat. O ator, conhecido por sua versatilidade e habilidade dramática, assume o papel de narrador e personagem principal com performance, fiel ao que se propõe, uma pena que a proposta não seja das melhores.

Luísa Arraes, por sua vez, interpreta Diadorim, um dos personagens centrais da trama. No entanto, sua abordagem parece cair em uma monotonia que não permite explorar a complexidade e a dualidade do papel, sendo excessivamente caricata e mesmo para ao padrões teatralizados. Já Rodrigo Lombardi e Luís Miranda conseguem ser ao menos razoáveis para os padrões dos seus personagens.

O maior destaque vai para Eduardo Sterblitch, conhecido por sua versatilidade e talento cômico, que interpreta Hermógenes. Sua entrega performática é destacada pela intensidade e pela imersão no papel, trazendo uma dimensão única ao universo sombrio e misterioso do filme. Com sua presença marcante, Eduardo Sterblitch contribui significativamente para a atmosfera Grande Sertão. Embora alguns talentos se sobressaiam, a falta de direção coesa e a inconsistência nas performances prejudicam a qualidade geral do filme.

Em termos técnicos, o filme ao menos não deixa a desejar. A cinematografia se mostra inspirada, com momentos visualmente impressionantes ou esteticamente bonitos, mostrando um empenho nessa questão. A trilha sonora, porém, embora competente, não consegue compensar as deficiências do roteiro e da direção, deixando o filme carente de impacto emocional e ressonância artística.

Em suma, Grande Sertão é uma adaptação decepcionante e desarticulada de uma das maiores obras da literatura brasileira. Ao desviar-se significativamente do espírito e da essência do Grande Sertão: Veredas, o filme falha em capturar a profundidade, complexidade e riqueza do original, resultando em uma experiência cinematográfica superficial e insatisfatória.

 

Pernambucano, jogador de RPG, pesquisador nas áreas de gênero, diversidade e bioética, comentarista no X, fã incontestável de Junji Ito e Naoki Urasawa. Ah, também sou advogado e me arrisco como crítico nas horas vagas.

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