Crítica | Meu Pai (The Father)

Nota
4

A carta ao envelhecimento e a tudo que o cerca. O que resta quando nossa memória já não corresponde mais à realidade? O que se faz quando não conseguimos reconhecer nossos próprios reflexos, como se estivéssemos diante de uma sombra desconhecida? No longa “Meu Pai”, baseado na peça de mesmo título, o cineasta francês Florian Zeller destrincha esses questionamentos no retrato do Mal de Alzheimer e suas respostas, através de um homem idoso que, gradativamente, perde a sua memória, enquanto sua filha tenta lidar com a nova condição do pai e com feridas abertas existentes na relação.

De uma certa forma, o roteiro permite que o espectador enxergue a obra sob duas óticas diferentes. Quando olhamos pela visão de Anthony, o pai, percebemos toda a ruína dentro da sua cabeça, como se as peças de seu tabuleiro estivessem totalmente desordenadas. É curioso, nesse sentido, entender que, embora o personagem ainda reconheça a si mesmo, pequenos detalhes do cotidiano passam despercebidos, como simples lembranças que somem na sua mente em frangalhos. Brilhante do início ao fim, Anthony Hopkins sabe imprimir toda a degradação do estado do protagonista, cativando cada momento com sua força colossal em cena. Aqui, não se vê gritos ou alterações, mas uma performance contida que faz jus à sensação de dor silenciosa que o Alzheimer promove, demonstrando o motivo pelo qual o intérprete pode levar seu segundo Oscar, sem dúvidas.

Por outro lado, temos Anne. Se a ótica do pai possibilita que o público se coloque no lugar do personagem, o olhar da filha também permite que isso aconteça, mas no seu local de fala. É interessante, nesse contexto, notar que também enxergamos em Anne um determinado cansaço mental, como se o peso de apoio para Anthony fosse extremamente duro e difícil. Aos poucos, é perceptível que esse fardo cresce, não só por causa da gravidade da doença, mas também pelo relacionamento conturbado entre pai e filha. Afinal, Anne possui uma certa mágoa pelo julgamento que recebe de Anthony, como se seus atos não fossem suficientes. Em todo instante, Olivia Colman procura expressar a frustração da personagem – basta observar a cena em que a filha derruba uma xícara no chão, tenta unir os cacos e percebe que é uma tarefa impossível, tal qual a reformulação do cérebro despedaçado de seu pai – e todo seu silêncio perante aquela situação. São duas grandiosas atuações que merecem todo reconhecimento, com a absoluta certeza.

Entretanto, nem tudo são flores. Apesar de todo empenho do arco principal, a trama secundária não tem o mesmo efeito. Afinal, os problemas da filha caçula de Anthony não são devidamente discutidos, permitindo uma sensação de que há algo que destoa de toda abordagem central. Embora os esforços sejam visíveis, o que se vê é um equívoco na condução de certas partes, como se histórias coadjuvantes não devessem ter o mínimo de relevância numa narrativa – e cabe aqui uma crítica a uma certa repetição desnecessária da condição de Anthony, mesmo que seja justificada pela degradação da doença. Seria uma saída mais louvável se o plot fosse descartado ou debatido com mais cuidado, ainda que seja secundário. Essa solução mostra mais desenvoltura do enredo e, consequentemente, justifica a sua inclusão de maneira alheia aos principais, mas dentro da proposta.

Entre erros e acertos, a direção de Florian Zeller se sobressai em alguns trechos. Nota-se um refinamento no seu olhar, principalmente pela sensação claustrofóbica que o cineasta promove – a ambientação inteiramente no apartamento, por exemplo. Em um dos momentos mais tocantes da narrativa, Zeller consegue, com sua câmera sensível, focar no autorreconhecimento de Anthony sobre sua doença, demonstrando a expressão realista do personagem com muito cuidado. Poucos segundos são suficientes para que toda sensibilidade da cena seja ecoada graças não só à entrega de Hopkins, mas também à direção, sempre valorizando planos irretocáveis. Além disso, vale salientar a fotografia sublime e a trilha sonora composta de clássicos que simbolizam o gosto refinado do protagonista e todo seu apreço pela música, especialmente num cenário em que tudo é passível a esquecimento – até mesmo o velho e bom som de suas músicas preferidas.

No fim de tudo, “Meu Pai” – e aqui cabe uma crítica à tradução do título, já que deixa subentendido que o filme parte da ótica da filha, o que não acontece – termina com uma qualidade cativante e sabe traçar os impactos da perda de memória e de uma doença que impede até mesmo o autorreconhecimento. Uma certeza de que muitos se viram no lugar de Anthony e de Anne também. Consegue, além disso, pincelar com cautela o conturbado relacionamento entre pai e filha, nivelando os dois lados e atingindo ambos olhares perante o estado de saúde do protagonista. É um filme com mais acertos do que erros e, portanto, merecedor de prêmios, sem dúvidas.

“Sinto como se eu estivesse perdendo todas as folhas, os galhos, os ventos e a chuva. Não sei mais o que está acontecendo…”

 

Apenas um rapaz latino-americano apaixonado por tudo que o mundo da arte - especialmente o cinema - propõe ao seu público.

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