Crítica | Mickey 17

Nota
5

O cinema sempre foi uma poderosa ferramenta para expor as engrenagens sórdidas da sociedade, e poucos gêneros fazem isso tão bem quanto a ficção científica. Enquanto muitos cineastas se contentam em apenas vislumbrar futuros distantes e mundos extraordinários, outros utilizam esse pano de fundo para dissecar os horrores do presente, expondo as perversidades de um sistema que trata pessoas como peças descartáveis. Bong Joon-Ho, se encaixa perfeitamente nesse segundo grupo, entregando uma crítica contundente sobre a exploração desenfreada e os limites éticos da tecnologia em sua nova obra-prima.

Mickey 17 segue essa tradição ao apresentar uma narrativa instigante que se vale do sci-fi para dissecar temas como exploração capitalista, identidade e o papel do indivíduo dentro de um sistema que o vê como mera engrenagem descartável. Adaptado do romance Mickey7, de Edward Ashton, o longa nos transporta para um futuro onde a colonização espacial já é uma realidade, mas onde as desigualdades sociais e a ganância continuam sendo a verdadeira força motriz por trás da expansão humana pelo universo. Nesse sentido, o filme extrapola a metáfora e a transforma em uma crítica explícita, denunciando a forma como a elite trata a classe trabalhadora como descartável e que, quando o capitalismo é ameaçado, recorre ao botão do fascismo o quanto antes.

O protagonista, vivido por Robert Pattinson, é um “Descartável” – um trabalhador cuja função é realizar as tarefas mais arriscadas e morrer repetidas vezes, sendo substituído por uma nova versão sua através de uma tecnologia de clonagem. A premissa, além de funcionar como uma alegoria potente do capitalismo selvagem, nos faz questionar até que ponto a ciência pode avançar sem comprometer a dignidade humana. A ideia de trabalhadores substituíveis, que podem ser apagados e replicados sem que isso represente qualquer perda para seus empregadores, é um reflexo inquietante da forma como o proletariado é tratado na vida real: sem identidade, sem subjetividade, sem valor além de sua utilidade para a produção. O filme escancara essa realidade e a transforma em uma parábola futurista que grita contra o avanço do autoritarismo corporativo.

Além da crítica ao modelo econômico e às relações de poder, o filme traça paralelos diretos com acontecimentos recentes. Gravado antes da volta de Donald Trump ao poder, Mickey 17 parece ter previsto o retorno do populismo autoritário e da retórica fascista. O vilão Kenneth Marshall, interpretado com brilhante exagero por Mark Ruffalo, encarna o arquétipo do líder carismático e megalomaníaco, disposto a moldar a sociedade a sua própria imagem, custe o que custar. Suas falas ecoam discursos reais, e sua obsessão com a “pureza” do novo mundo colonizado remete às piores páginas da história humana. Sua figura grotesca é um reflexo direto da ascensão de políticos autocráticos e empresários bilionários que buscam concentrar ainda mais poder.

Outro nome que inevitavelmente vem à mente ao assistir ao filme é o de Elon Musk. O bilionário sul-africano, com sua obsessão pela colonização de Marte e seu discurso de que a humanidade deve se tornar uma “espécie multiplanetária”, parece ter servido como inspiração para as corporações que controlam a colonização em Mickey 17. A diferença é que, no filme, a exploração dos trabalhadores é escancarada e levada ao extremo, enquanto, na realidade, ela se esconde sob promessas de inovação e progresso. O longa denuncia o discurso sedutor da exploração “visionária”, mostrando que, por trás da busca pelo progresso, o que se esconde é o mesmo sistema predatório que sempre existiu.

No quesito atuações, Robert Pattinson mais uma vez se prova um dos atores mais versáteis de sua geração. Seu desempenho como múltiplas versões de Mickey é impressionante, variando nuances de personalidade e fisicalidade de forma convincente. Cada nova interação do personagem parece única, e sua interpretação confere profundidade a um protagonista que, em mãos menos hábeis, poderia se tornar apenas um conceito abstrato. Já Mark Ruffalo, em uma atuação completamente absurda e caricata, rouba a cena com seu ditador fanfarrão, demonstrando total domínio do humor satírico e do exagero necessário para tornar seu personagem ao mesmo tempo ridículo e assustador. Sua performance ressalta o perigo real que figuras como Kenneth Marshall representam: apesar de cômicos à primeira vista, são profundamente letais.

Visualmente, Bong Joon-Ho entrega um espetáculo de contrastes. As paisagens geladas de Niflheim evocam um isolamento opressor, enquanto os interiores da colônia remetem ao luxo decadente das elites que comandam a missão. A fotografia de Darius Khondji e o design de produção de Fiona Crombie colaboram para criar uma ambientação que reforça o subtexto do filme: um mundo onde poucos vivem no conforto, enquanto a maioria é sacrificada pelo bem da “civilização”. Cada detalhe visual reforça a separação brutal entre classes, tornando o ambiente da colônia tão opressivo quanto fascinante.

Mickey 17 não é apenas um filme de ficção científica; é um retrato ácido de um mundo em que o ser humano é descartável e onde o progresso serve apenas aos interesses de quem já está no topo. Com uma abordagem que mistura humor, crítica social e ação, Bong Joon-Ho mais uma vez prova sua maestria em criar narrativas que nos fazem rir enquanto sentimos um incômodo crescente.

Em tempos de crescente autoritarismo e desumanização, Mickey 17 surge como um alerta, lembrando-nos que, no fim das contas, a ficção científica nem sempre está tão distante da realidade quanto gostaríamos de acreditar. Seu impacto transcende a tela, e sua mensagem é clara: se não questionarmos o presente, seremos vítimas do futuro que já está sendo desenhado.

 

Pernambucano, jogador de RPG, pesquisador nas áreas de gênero, diversidade e bioética, comentarista no X, fã incontestável de Junji Ito e Naoki Urasawa. Ah, também sou advogado e me arrisco como crítico nas horas vagas.

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