Crítica | Noite Passada em Soho (Last Night in Soho)

Nota
4.5

“Tem algo nos anos 60 que me atrai”

Eloise Turner é uma jovem cheia de dons, ela vive no interior da Inglaterra com sua avó, Peggy, e  o fantasma de sua mãe, ambas incríveis costureiras que não conseguiram seguir o sonho de se tornarem estilistas. Por influencia de sua avó, Ellie é apaixonada pelos anos 60, pela música, o visual, o estilo e a atmosfera. Sua vida ganha uma raio de luz quando ela finalmente recebe a cara informando que ela foi aprovada para receber uma bolsa de estudos para cursar Design de Moda em Londres, mas sua mudança para o bairro do Soho não vem acompanhada só de belezas, suas primeiras experiências são ameaçadoras, quando ela acaba indo parar na boca dos leões na forma das suas colegas de republica, o que a força a se mudar para um quarto alugado na Rua Goodge, um quarto que ela acaba descobrindo ser assombrado pelo fantasma de Sandie, uma poderosa cantora dos anos 60, que rapidamente se conecta com a jovem inocente e a suga para o passado, onde ela começa a, toda noite, reviver memórias da vida de Sandie. Soho pode ser um bairro lindo, mas ele esconde pesadelos tanto no presente quanto no passado.

Quando os primeiros trailers da produção co-roteirizada e dirigida por Edgar Wright foram lançados, fomos surpreendidos por um curioso e estrelado suspense. Nostálgico e misterioso, Noite Passada em Soho parecia ser mais um daqueles filmes policias com um toque sobrenatural, desde o trailer sabíamos que Sandie seria assassinada por Jack, sabíamos que Ellie iria cruzar com Jack anos depois e acabaria sendo sugada para o fundo desse crime sem solução, mas Wright reservava muito mais para nós, esse é mais um daqueles filmes que podemos claramente dizer que somos enganados pelo trailer, ele nos entrega uma história morna de investigação nos anos 60, mas o filme nos entrega um estupendo terror psicológico que nos agarra e nos consome, assim como acontece com Ellie noite após noite. Nós somos colocados no lugar de Ellie, começamos a conhecer pouco a pouco a vida de Sandie, começamos a ser psicologicamente consumido a medida que a beleza dos anos 6o começa a obscurecer, a medida que a verdadeira face de Soho começa a ser revelada. Passado é a grande palavra que guia todo o roteiro, começamos pelo passado de Ellie, os sonhos nunca realizados de sua mãe e sua avó, seguimos pelo passado de Londres, por quem Ellie é apaixonada, e somos jogados no passado de Sandie, tão brilhante e tão assustador. O longa é puro saudosismo que já é marca registrada de Wright, mas ele toca o inesperado quando começa a falar sobre o conflito entre os sonhos de Ellie e os perigos por trás das sedutoras luzes brilhantes da cidade grande.

Thomasin McKenzie nos surpreende com sua Ellie, a doce garota interiorana parece buscar sempre ver o lado positivo das coisas, ela quer seguir o seu sonho e enxerga em Sandie uma inspiração inesperada, ela se apaixona pela vida da cantora e se conecta brutalmente com ela, o que só torna tudo ainda mais doloroso a medida que ela começa a conhecer os traumas da jovem talentosa, a medida que os fantasmas de Sandie começam a ultrapassar o mundo dos sonhos e começam a perseguir Ellie, a medida que o velho Jack começa a surgir oportunamente em vários lugares de Soho. A inocência de Ellie parece uma alegoria perfeita para a história, ela, assim como Sandie, chega a Soho com um sonho, mas Londres é um lugar mal, e ele começa a, vagarosamente, destroçar as duas. No outro lado da moeda temos Anya Taylor-Joy dando um show no papel de Sandie, a jovem Alexandra é linda, decidida, poderosa e inabalável, é impossível não se apaixonar pela sua atitude desde os primeiros segundos de sua aparição, sua confiança se projeta da tela e nos cativa, assim como a fragilidade em seu olhar e sua amável voz, o que só nos deixa ainda mais tocado pelo destino que sua vida vai tomando durante sua busca pelo estrelato, e que só nos faz começar a odiar cada vez mais Jack. A vida de Sandie passa por uma angustiante degradação, que nos dá um dor no peito e destroça nossos sentimentos, Anya começa o filme tão poderosa que nos lembra a atuação de Uma Thurman em Pulp Fiction, e isso só torna ainda mais doloroso ver o quanto ela precisa se tornar submissa para seguir seus sonhos, o quanto a mulher poderosa acaba sendo reduzida a uma versão destruída e usada de si mesma.

Matt Smith é uma peça fundamental na história, assim como Terence Stamp, ambos vivem a personificação dos perigos de Londres. Smith, no passado, faz de Jack, o agente e namorado de Sandie, o símbolo da subversão, ele força Sandie a se afogar no lodoso rio do submundo de Londres, oferece a fama à garota e depois a coloca no mundo dos favores sexuais, se transformando num cafetão para a prostituta que ele criou, sem realmente se importar com o quanto estava destruindo a garota. Já Stamp cruza a vida de Ellie oportunamente, ele tem uma forte conexão com Sandie, ele parece enxergar algo diferente em Ellie, e rapidamente a garota começa a enxergar que ele pode ser o monstro que destruiu a vida de Sandie, ele olha para o homem no bar e rapidamente enxerga Jack, o que a faz se dedicar ainda mais a descobrir sobre o assassinato de Sandie, a provar que ele é o assassino e finalmente faze-lo pagar pelo crime, para poder dar paz ao fantasma de Sandie, a garota que morreu na mesma cama que ela agora dorme. Como se não bastasse seu quarteto principal, o longa ainda constrói personagens e participações que abrilhantam a cena, seja por meio da participação de uma sósia de Cilla Black, que coopera com a nossa aclimatação, ou com os personagens de Diana Rigg Sam Claflin, que são jogados na trama sem muito destaque para trazer elementos que interferem diretamente nas escolhas das protagonistas. Tudo no filme coopera, de uma forma mágica, para os debates evocados pelo roteiro de Wright e Krysty Wilson-Cairns, mas, acima de tudo, cada um dos elementos deixa clara as inspirações nos clássicos do terror britânico, principalmente no Repulsion de Polanski.

Cruamente aterrorizante, Noite Passada em Soho abusa de canções e ruídos para nos sugar para essa experiência angustiante, assim como usa desavergonhadamente as luzes neon e a maquiagem exagerada para compor uma fotografia amplamente expressiva, o que só emoldura os sentimentos das protagonistas e iluminam ainda mais o hipnotizante vestido rosa esvoaçante que toma uma vaga protagonista no longa, podendo facilmente entrar na lista dos grandes figurinos da história do cinema. Construído com uma base contraditória, que seria a formula perfeita para o fracasso, o longa mostra toda a competência de seu diretor ao brincar com as conexões humanas, com o cenário fértil para a opressão e com a impotência de um sonhador diante do monstro da realidade, o longa exalta a nostalgia a todo momento para, segundos depois, desmontar a utopia idealizada de sua protagonista (e consequentemente a dos espectadores) ao mostrar que a cidade grande, e principalmente Soho, é pavimentada com os sonhos destruídos de muitas Sandies e Elloises, que é habitado por muitos Jacks e Jocastas, e que muito dificilmente você conseguira encontrar a oportunidade de ser salvo pelos Lindseys e Johns. A previsibilidade é o grande artificio que empodera o roteiro do longa, somos acomodados para conhecer a história e prever os eventos, somos forçados a prever um final claro, mas somos surpreendidos por um plot twist gigantesco que nos arremessa para fora desse conforto e nos joga num eletrizante ato final, onde todas as peças do quebra-cabeça começam a verdadeiramente se encaixar e toda a história começa a ganhar um novo sentido, que é capaz de deixar os espectadores em choque após os créditos, ainda digerindo tudo que presenciaram.

“- Era o mínimo que eu podia fazer.
– E o máximo?”

 

Sonhador nato desde pequeno, Designer Gráfico por formação e sempre empenhado em salvar o reino de Hyrule. Produtor de Eventos e CEO da Host Geek, vem lutando ano após ano para trazer a sua terra toda a experiência geek que ela merece.

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