Crítica | O Auto da Compadecida

Nota
5

Os maiores dilemas da existência humana frequentemente encontram refúgio no humor. O contraste entre o sagrado e o profano, o cômico e o trágico, é um dos mais poderosos alicerces narrativos e, quando bem executado, transcende barreiras culturais e temporais. Em uma paisagem árida, onde a fé e a esperteza são as únicas armas contra a miséria, uma história genuinamente brasileira emerge, carregada de espiritualidade e sarcasmo.

Em O Auto da Compadecida, dirigido por Guel Arraes, acompanhamos João Grilo (Matheus Nachtergaele) e Chicó (Selton Mello), dois personagens que personificam o espírito de sobrevivência e a criatividade frente à miséria e que vivem de golpes e histórias em um sertão repleto de figuras caricatas e situações absurdas. Adaptado da obra teatral de Ariano Suassuna, o filme combina elementos da cultura popular e do cordel para narrar as aventuras dessa dupla ao confrontar coronéis opressores, padres corruptos, cangaceiros e culminando no destino que aguarda todos aqueles que vivem.

A força da adaptação reside na precisão com que traduz os temas universais da obra original para o cinema, sem perder a autenticidade regional. Matheus Nachtergaele brilha como João Grilo, o esperto e carismático “rei dos trambiques”, entregando uma performance que alterna humor ácido e emoção genuína, enquanto Selton Mello, o medroso contador de histórias, equilibra a dupla com uma comicidade despretensiosa. Juntos, eles dão vida a uma química irresistível, sustentando o tom tragicômico da narrativa.

Os personagens secundários de O Auto da Compadecida enriquecem a narrativa com humor e crítica social. Lima Duarte brilha como o Bispo, uma figura que satiriza a hipocrisia religiosa com gestos caricatos e discursos moralistas. Denise Fraga, como Dora, traz carisma e astúcia, representando a força feminina em meio a um cenário dominado por homens. Marcos Nanini, no papel do cangaceiro Severino, mistura ameaça e comicidade, tornando seu personagem uma figura tão perigosa quanto tragicômica. Por fim, Fernanda Montenegro, como a Compadecida, é a personificação da justiça e da misericórdia, iluminando as cenas finais com profundidade espiritual. Esses personagens complementam a trama principal, oferecendo nuances que ampliam a riqueza narrativa e o impacto emocional do filme.

A figura de Jesus, vivida por Maurício Gonçalves, é uma das mais impactantes da narrativa, não apenas pela carga simbólica, mas pela maneira como subverte expectativas tradicionais. Representado como um homem negro, calmo e sereno, sua imagem rompe com os estereótipos eurocêntricos comumente associados à iconografia cristã, oferecendo uma visão mais inclusiva e próxima da diversidade brasileira. A interpretação sensível de Gonçalves confere ao papel uma aura de proximidade e acolhimento, tornando a mensagem espiritual da obra ainda mais poderosa. Jesus aqui não é apenas uma figura divina, mas um símbolo de empatia em um mundo marcado por erros humanos.

Sob a direção de Guel Arraes, a obra brilha ao traduzir a riqueza literária de Suassuna em uma linguagem cinematográfica vibrante, que valoriza os elementos regionais sem cair no estereótipo. Cenários rústicos, uma trilha sonora enraizada na música nordestina e um ritmo narrativo ágil criam uma experiência cinematográfica vibrante. A simplicidade dos efeitos visuais nas cenas de fantasia, como o julgamento celestial, confere uma aura artesanal ao filme, reforçando seu tom de fábula popular.

No entanto, o maior mérito de O Auto da Compadecida está em sua capacidade de utilizar o humor como ferramenta crítica. Questões como a desigualdade social, a hipocrisia religiosa e a luta pela sobrevivência no sertão são tratadas com leveza sem perder a profundidade. A narrativa desafia convenções ao expor a fragilidade e as contradições humanas, enquanto celebra a resiliência e a criatividade do povo nordestino.

O longa não é apenas uma comédia. É uma celebração da cultura brasileira, uma homenagem ao sertão e às suas lutas diárias. A trilha sonora, composta por música regional e melodias que ecoam tradições folclóricas, complementa perfeitamente o tom do filme. A cinematografia, apesar de simples, captura com precisão a rusticidade e a beleza do cenário nordestino, enquanto o figurino reforça a identidade cultural da obra.

Se há algo a criticar, talvez sejam os momentos em que a caricatura se aproxima do exagero. Contudo, até mesmo esses excessos parecem intencionais, refletindo a natureza satírica da obra. Afinal, o humor é amplificado pelo absurdo, e é nesse terreno que o filme encontra seu brilho.

O Auto da Compadecida não é apenas um marco no cinema brasileiro; é uma obra que ressoa com qualquer público, em qualquer época. Em suas reviravoltas cômicas e emocionais, ele celebra a humanidade em toda a sua complexidade, convidando o espectador a rir, refletir e, acima de tudo, sentir.

 

Pernambucano, jogador de RPG, pesquisador nas áreas de gênero, diversidade e bioética, comentarista no X, fã incontestável de Junji Ito e Naoki Urasawa. Ah, também sou advogado e me arrisco como crítico nas horas vagas.

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