Crítica | O Diabo de Cada Dia (The Devil All The Time)

Nota
4

“Anos atrás, Willard havia montado uma cruz desgastada acima de uma árvore caída […]
Ele ia todas as manhãs e noites para conversar com Deus.
Para seu filho, parecia que o pai sempre lutava contra o diabo de cada dia.”

Na cidade de Knockemstiff, em Ohio, uma grande ligação de sangue existe, principalmente com uma família de Coal Creek, na Virginia. Willard Russell, um veterano da Segunda Guerra Mundial, acabou conhecendo o amor na doce Charlotte, uma garçonete com quem teve o inocente Arvin. Mas a infância de Arvin foi duramente destruída por seu pai, que projetou os horrores da guerra em um altar em seu quintal, o altar onde ele sacrificou Jack, o cachorro de seu filho, para pedir a Deus para salvar sua esposa do câncer, o mesmo altar onde ele se suicidou (quando sua esposa acabou morrendo) e foi encontrado por seu filho. Ao mesmo tempo, Helen, uma antiga pretendente de Willard, acabou se apaixonando por Roy, um pregador paranoico com quem teve uma filha, Lenora, e que a assassinou, durante um delírio de ter se tornado milagreiro. Na mesma lanchonete onde Willard conheceu Charlotte, Carl conheceu Sandy, começando uma relação sórdida que evoluiu até eles se tornarem serial-killers atacando viajantes desavisados, o que incluiu Roy, que fugia da responsabilidade pela morte de Helen.

Os anos se passaram, Arvin e Lenora agora vivem como irmãos na casa de sua avó, Arvin carrega em sua personalidade a marca da sua brutal infância e Lenora vive da fé, sem saber o destino de seu pai ou o que realmente aconteceu com sua mãe. Em Ohio o Xerife Lee Bodecker tenta uma nova eleição, mas em seu caminho tem sua irmã Sandy, que ele acha ser apenas uma prostituta sem saber que ela é uma assassina, um Xerife corrupto pronto para fazer de tudo para manter seu posto. Ao mesmo tempo que toda essa negritude invade as cidades, um novo pastor chega à Virgínia, mas quem poderia esperar que o Pastor Teagardin fosse mais uma das almas negras que chegariam para arruinar toda a pureza dessa comunidade interiorana?

Com a trama largamente conectada com Arvin e sua família, mas principalmente no garoto, cabe a Tom Holland ter uma atuação excelente para carregar um roteiro tão denso por seu caminho tortuoso, somos levado a fundo na alma de cada um dos personagens principais, nos mostrando cada fato marcante que os tocou e como tudo isso afeta a vida do protagonista, nos levando a fundo nas perversas orações de Lenora, no segredo por trás do altar de Willard, na tensão por trás do trabalho de Lee, na inescrupulosa rotina do Pastor, na luz que nasceu da obscura vida de Sandy, entre tantas outras coisas.

Mas obviamente, não é só de Holland que vive um filme tão denso, a construção que vemos no Willard de Bill Skarsgård é surpreende, fica claro a mancha que a guerra deixou na sua alma, nos sentimos cara a cara com um Pennywise em redenção pronto para matar por seu amor, mas o roteiro e sua atuação ainda vão mais além. O Xerife de Sebastian Stan é outro ouro do filme, vemos o medo, a dedicação e a perseverança em seus atos, ficamos perdidos na busca por saber até onde a corrupção tomou sua personalidade e surpresos a cada faísca de justiça que surge em sua evolução. Por último temos o esquisito Pastor de Robert Pattinson, que nos lembra bastante um vampiro (será que foi intencional?) e rapidamente cativa nosso receio, fica claro desde o início o quanto ele é ardiloso, e é doloroso assistir seus atos contra seu descuidado rebanho, subvertendo mentes descuidadas e machucando com palavras disfarçadas de pregação.

Claro que tudo isso não poderia ter saído do papel sem a direção de Antonio Campos, que adaptou a belíssima obra de escrita por Donald Ray Pollock em 2011. Fica claro no decorrer do filme o quanto o cenário rural das duas cidades protagonistas escondem o berço de tanto mal, concebendo vidas tão sofridas que podem levar seus habitantes a viver dois extremos, ou ser extremamente bom e inocente ou ser extremamente corruptível e avido por fazer justiça às suas ideias, a dubiedade da índole de Sandy, Willard, Arvin, Lee, Teagardin e Roy é exposta a todo momento, nos mostrando o bem e o mal dentro de cada ideia, nos mostrando, literalmente, o diabo de cada dia, as tentações e provações que cada um deles passa, e a forma como cada um deles acaba sendo levado pela maldade de seu ambiente para locais tão macabros dentro da própria consciência, e isso é principalmente mostrado na evolução do jovem Arvin, que mostra o quanto o ambiente foi capaz de molda-lo ao mesmo tempo que manteve seu coração puro mas sua consciência tão enegrecida.

É praticamente impossível acabar o filme com uma opinião formada sobre Arvin, o garoto é tão inocente quanto culpado, é tão assassino como vítima, e sua história é a clara composição da incerteza em nossa mente. Claro que tudo poderia ser melhor construído se as histórias em volta do filme tivessem ido mais fundo em certas questões, ou se alguns acontecimentos pudessem ter sido melhor explorados, mas as falhas são aceitáveis ao ponto de não estragar completamente o longa, principalmente por conta da envolvente fotografia que a produção possui. Com uma nitidez clara, uma calma em nos contar seus contos e um isolamento aceitável dos eventos mundiais, a obra esquece a Segunda Guerra Mundial, que é um elemento chave na derrocada moral de Arvin, mas não nos faz sentir falta disso, nos carregando pelas paisagens dos anos 60 e 70 ao mesmo tempo que nos faz ficar cada vez mais em defesa de seu protagonista, um jogo de cintura exemplar de produtores, diretor e elenco.

“Enquanto os pensamentos vinham, ele não tinha certeza se estava indo para trás ou para a frente.
Ele sabia que, onde quer que fosse, era mais agradável do que Knockemstiff”

 

Sonhador nato desde pequeno, Designer Gráfico por formação e sempre empenhado em salvar o reino de Hyrule. Produtor de Eventos e CEO da Host Geek, vem lutando ano após ano para trazer a sua terra toda a experiência geek que ela merece.

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