Crítica | O Irlandês (The Irishman)

Nota
5

Em um belíssimo trabalho de ressignificação de sua carreira, Martin Scorsese, no auge (sem ironia) de seus 77 anos, retorna em 2019 ao gênero que lhe consagrou; curiosamente, com muito mais produção, ambição técnica, sobriedade e, também, melancolia.

História real e polêmica, a trama de O Irlandês, adaptada do livro de Charles Brandt “I Heard You Paint Houses” pelo roteirista Steve Zaillian, trata do veterano de guerra Frank Sheeran (Robert De Niro) que começa a trabalhar para o mafioso poderosíssimo Russell Bufalino (Joe Pesci), com quem compartilha décadas de uma vida cercada por assassinatos.

A certa altura, Frank se torna também o braço direito de um dos nomes mais importantes da década de 1960 nos Estados Unidos: Jimmy Hoffa (Al Pacino), presidente do sindicato dos caminhoneiros e, segundo o narrador personagem, o homem mais famoso do país depois do presidente da república. Hoffa é um sujeito impulsivo e teimoso que entra em uma mortal rixa com a família Kennedy – relação conflituosa e pouco esclarecida que, como já é registrado historicamente, terminou em tragédia para ambas as partes.

Apesar de revisitar o gênero de gangster com sua assinatura característica – e sua ‘trupe’ característica, na frente e por trás das câmeras -, Scorsese filma O Irlandês com um caráter unicamente épico e simultaneamente contemplativo. Muitas coisas acontecem em sua imensa duração de 3h20, num ritmo constante e sem uma gota (a mais ou a menos) de gordura. Se nos seus filmes do século passado o cineasta era um estrondo na violência e nos enquadramentos quentes e alucinatórios, aqui ele mantém a energia visual e a grandeza dos cenários, mas dentro de um registro muito mais sóbrio e objetivo.

A violência é um fator inerente àquelas pessoas e àquela realidade. Não há sequer um desfrute em se viver na vida do crime (nem o prazer do luxo e da fortuna nem o prazer sádico das mortes). A exceção é a sequência em câmera lenta que acontece no meio de uma multidão – muito mais interessada no efeito cômico proveniente do absurdo/ridículo do que no choque ou na catarse. Não quer dizer que a violência do filme seja sugerida ou higienizada, não é. Ela existe de maneira frontal, rápida e realista o suficiente para ser incorporada ao mundo daqueles personagens.

Ao longo de uma duração dessas, o componente brutal da história pode se tornar banalizado pelo roteiro, mas a genialidade de O Irlandês está justamente em tornar todas essas mortes – as que aparecem e as informadas em legenda – partes de um árduo e solitário processo de envelhecimento. É uma violência que, pelo acúmulo, deixa sequelas emocionais nas relações do protagonista com os que ele mais preza.

O envolvimento de Frank se torna tão automático e dependente dessas conexões com a máfia, com Russell e com Hoffa, que chega um ponto onde o filme mal desacelera para o público acompanhar o que se passa na sua casa e na sua família. E mesmo num jogo de boliche ou numa celebração de natal, o peso de suas ações e de seu trabalho está ali estampado no rosto de sua filha Peggy – cujo olhar de medo, reprovação e desesperança é como um fantasma que vai assombrar simbolicamente o terceiro ato inteiro.

E, apesar de histriônica, estilosa e cheia de vida, a câmera de Scorsese observa a violência com o objetividade e se atenta às hipnóticas trocas de olhares. Afinal, acompanhar dois personagens decidindo um futuro trágico e doloroso num café da manhã corriqueiro tem um peso muito mais definitivo do que o sangue que pinta as paredes da casa a seguir.

É um mosaico de personagens sempre muito transparentes para a plateia, mesmo quando nenhuma palavra é dita. Pesci tem o olhar mais eloquente do mundo mesmo sob muita maquiagem e Al Pacino é dono das cenas mais hilárias, transformando o que poderia ser uma caricatura de líder/político nervoso na figura de maior conexão possível com a plateia.

De Niro, com todo o rejuvenescimento virtual e maquiagem, é uma figura de modos curtos e ações expressivas, que cumpre seu dever mesmo este sendo emocionalmente devastador – e Scorsese é tão sábio em suas escolhas que compreende tanto o sutil lado hesitante da cena chave de O Irlandês como o reflexo natural de tudo aquilo em suas cenas finais. E é memorável como o diretor passa os últimos 20 minutos em um desespero existencial junto a Frank. O medo de ser esquecido e desaparecer – como tantos outros – é tão grande que, na dúvida, é melhor deixar a porta aberta.

 

De Recife (PE), Jornalista, leonino típico, cinéfilo doutrinador.

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