Crítica | O Silêncio dos Inocentes (The Silence of The Lambs)

Nota
5

Durante décadas, a psicologia e setores da filosofia sempre estudaram a mente humana, à procura de motivos que possam justificar certas atitudes e comportamentos diversos. Criminosos notáveis, inclusive, e seus crimes estiveram no centro de estudos, como se um fosse a peça-chave para desvendar o psicológico do outro. A frieza com a qual muitos cometem suas barbaridades chama a atenção, tal qual um ciclo que parece não ter fim, tampouco uma solução.

Através desse contexto, Jonathan Demme constrói a narrativa de “O Silêncio dos Inocentes”, filme baseado num livro de mesmo título. Na primeira cena, somos apresentados à jovem estudante Clarice Starling, que almeja ser incorporada ao FBI, e seu duro treinamento militar. Nesse cenário, o roteiro emula uma personalidade determinada e com uma competência única, como se a personagem estivesse numa redoma fria que reprime os sentimentos e os anseios. Afinal, é uma mulher num meio predominantemente masculino e que não teme as barreiras, mesmo que as cobranças sejam diárias e o assédio dos homens seja constante no seu cotidiano.

Quando Jack Crawford, o diretor da corporação, se depara com a chance de prender Buffalo Bill, um assassino que aterroriza mulheres e praticamente não deixa rastros, Clarice se vê diante de um desafio: como lidar com uma mente tão perturbada e capaz das maiores barbaridades, em nome dos próprios instintos? Eis que, perante esse questionamento, surge a figura enigmática de Hannibal Lecter, um renomado psiquiatra canibal responsável por várias mortes e condenado à prisão perpétua. O mal em carne e osso.

Antes mesmo de inserir fisicamente o calculista Lecter na trama, Demme o transforma numa espécie de entidade, como se tudo girasse em seu torno e dependesse de sua ótica. Quase como uma criatura onipresente, sabe como funciona a mente de um assassino e usa o seu domínio na psiquiatria para destrinchar enigmas da natureza humana. Nesse contexto, o olhar detalhista da direção flerta com a realidade e deixa o espectador imaginar as figuras de Lecter, Bill e suas histórias, como se algo de ruim fosse acontecer sempre, justamente na conversa entre Starling e Crawford. Mais do que uma simples imaginação, cria um temor, destacando ainda mais a genialidade da direção.

A partir do momento em que Clarice e Lecter ficam frente a frente pela primeira vez, a projeção dá início a um jogo de manipulações e clima de suspense, motivados por um ambiente quase claustrofóbico e pelos tipos bizarros que vivem no local. Ao mesmo tempo em que a jovem policial se choca com o cenário e a frieza de seu algoz, se mostra fascinada por aquela criatura, que tenta manipular toda situação. Nesse trecho, a câmera de Demme e o texto brilhante de Ted Tally conseguem colocar o espectador no lugar de Clarice, fazendo com que se sinta as preocupações da personagem, mergulhada num misto de sentimentos, e a tensão da cena, uma vez que o roteiro não hesita em mostrar a ameaça que a figura de Lecter apresenta. Ora, uma pessoa condenada não estaria numa cela completamente isolada se não representasse um perigo real – o próprio assassino sabe muito bem disso e esse é o seu maior deleite.

À medida que o perigoso homicida tenta controlar o momento, a policial percebe e decide fazer a mesma coisa. Aos poucos, a aparente pacificidade do diálogo se transforma numa sucessão de mudanças de comportamento de Hannibal, que passa de uma sedução manipuladora a uma persona que aterroriza friamente. Cada passo dos dois personagens é milimetricamente calculado e a mente por trás de tudo isso transmite um ar sombrio único, tal qual o momento em que os outros internos surtam e o público sente o pavor de Clarice, humilhada por Lecter e ainda alvo de uma jatada desagradável de esperma no rosto. O até então silêncio vira um som desesperador de gritos e olhares escandalizados, desestruturando a jovem e trazendo a sensação de que nada acontece por acaso, nem mesmo toda aquela situação angustiante.

Nessa perspectiva, somos mergulhados no passado amargo de Clarice e nas suas lembranças não tão distantes. Embora vejamos uma forte profissional, ainda podemos observar a fragilidade da infância e seus traumas, principalmente com relação à perda do pai. Aqui, em um dos encontros, Lecter inverte o cenário e extrai de Clarice as suas duras memórias, aparentando um sentimento confuso por aquele diálogo. Estaria Hannibal empático com o sofrimento da moça ou excitado pela sua carne, a interpretando como “presa fácil”? Uma indagação pertinente, afinal, seu maior prazer é torturar psicologicamente suas vítimas antes de atacar fisicamente, depois de conhecer o “ponto fraco”.

Enquanto os dois destrincham a intimidade um do outro, o público é apresentado à aparente pacata imagem de Buffalo Bill. Nesse aspecto, o roteiro se mostra despreocupado em não adiar tal revelação, visto que o jogo entre Lecter e Clarice se transforma no fio condutor da narrativa. Como quase todo assassino sádico, Bill veste a máscara de “cidadão de bem” para não levantar nenhuma suspeita. Por fora, parece ser o vizinho adorável. Por dentro, capaz das maiores selvagerias. Tal qual um búfalo sem controle, age agressivamente na surdina, tentando justificar seus atos e alimentando suas monstruosidades. Assim como Lecter, Bill demonstra frieza nas suas emoções e na tortura que faz com suas vítimas, mesmo que não meça as consequências – o que, nesse ponto, não condiz com Hannibal, que sabe muito bem seus objetivos.

Com relação aos quesitos técnicos, a direção de Demme se mostra um grande trunfo do longa. Extremamente cuidadoso, o cineasta não poupa o espectador de enquadramentos e focos nas expressões dos personagens, essencialmente nos diálogos ácidos e tensos entre Lecter e Starling e na assustadora cena em que o primeiro escapa do manicômio, depois de matar dois guardas com requintes de crueldade. A perfeição com a qual o diretor conduz essa segunda cena é única e consagra o ar meticuloso que paira sob Hannibal, dotado de uma sagacidade única. Além disso, a fotografia é sombria e contribui para a tensão que guia o filme, assim como a trilha sonora hipnotizante – e até mesmo a falta dela em alguns momentos – e as sequências que se formam como um verdadeiro quebra cabeça.

Apesar de todos esses detalhes fantásticos, a maior riqueza do filme está nas atuações dos protagonistas. Assustadoramente calculista no papel, Anthony Hopkins, ainda que apareça por menos de 20 minutos em cena, se consagra como uma das maiores performances masculinas de todos os tempos. Hannibal é uma explosão de sentimentos. Enquanto mostra uma faceta gentil e educada, é capaz de se atirar de forma selvagem no pescoço de sua vítima, sem hesitar. Nas mãos de um ator menos experiente ou com menos perspicácia, o personagem poderia passar quase despercebido e cair numa caricatura desastrosa, mas a força sobrenatural de Hopkins impede que isso aconteça. Um gigantesco perfil nas mãos de um brilhante ator.

Não atrás de seu colega de cena, Jodie Foster constrói as camadas de Clarice Starling perfeitamente. Apesar de contida, a policial sabe expor suas emoções e, muitas vezes, seu olhar revelador se mostra maior que sua própria voz, em situações nas quais o texto se faz desnecessário. Mais do que uma simples característica discreta (e isso é visto no seu próprio figurino), Clarice é observadora e sabe ser calculista quando convém – até quando se desestrutura emocionalmente. Quanto mais a personagem cresce na narrativa, mais a atuação de sua intérprete se torna gigante. Assim como Hopkins, Foster venceu merecidamente o Oscar de Melhor Atriz no ano seguinte, com uma grandiosa vitória.

Embora seja considerado por muitos como um drama mesclado com suspense, “O Silêncio dos Inocentes” consegue captar todo o terror psicológico que a narrativa propõe, enfatizando momentos em que a aflição se sobrepõe a todo tipo de sentimento sobre a obra e as simbologias – como a criação de mariposas de Buffalo Bill e os gritos dos cordeiros – que compõem o desenvolvimento. A sua articulação impressiona e sua longa duração parece fluir sem nenhum problema, numa ótica em que tudo se encaixa e se conecta perfeitamente. Uma verdadeira obra-prima do gênero, sem sombra de dúvidas.

“A maioria dos assassinos guarda um troféu de suas vítimas.”

 

Apenas um rapaz latino-americano apaixonado por tudo que o mundo da arte - especialmente o cinema - propõe ao seu público.

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