Crítica | Parasita (Gisaengchoong)

Nota
5

Não é à toa a preferência do sul-coreano Bong Joon-Ho pela constante mutação do tom de seus filmes, essa capacidade de fazer curvas narrativas bruscas oferece ao cineasta a possibilidade de manipular o público e levá-lo a um labirinto de sensações, do qual é praticamente impossível prever os próximos acontecimentos. Essa funcionalidade é eficaz em roteiros mais expansivos (O Hospedeiro, Mother) e em produções maiores e de apelo mais global (Expresso do Amanhã, Okja), mas torna-se uma verdadeira máquina de engajamento quando condensada no jogo social de gato e rato de Parasita.

No início o longa é como uma boa comédia farsesca: uma família pobre de quatro integrantes que pouco a pouco começa a trabalhar na casa de uma família rica. O filho mais novo passa a ensinar inglês à filha do casal rico; a filha mais velha se torna tutora comportamental da criança da casa; o pai assume o lugar do motorista e a mãe, a certa altura, a cozinheira. A partir daí os personagens passam a viver no limiar de um desastre, como nos melhores filmes de assalto, em que Bong tira o espectador o tempo inteiro de sua zona de conforto através dos obstáculos mais absurdos possíveis.

Os cenários são relativamente limitados; enquanto em Expresso do Amanhã o movimento era inevitavelmente horizontal (toda a história, afinal, se passa em um trem gigantesco), Parasita lida o tempo todo com a ideia de cima e baixo. O primeiro plano abre com a janela da família principal, de onde da pra ver a rua como se estivéssemos literalmente embaixo da terra. Os personagens são, a princípio, filmados em plongée (de cima pra baixo) enquanto buscam a wi-fi do vizinho de cima. E todos ficam imóveis e abaixados, com as janelas abertas, quando a dedetização chega no bairro e a fumaça toma conta de sua casa (sem sequer o conflito central ser estabelecido, o título do filme já foi explicitamente explicado). Quando a família Rica é introduzida, os ângulos se abrem e a imagem fica ainda mais limpa e cristalina; a majestade do ambiente é amplamente registrada pelas lentes e pelo fascínio do personagem do filho, que primeiramente vai até o local.

As transições de gênero, apesar de um tanto chocantes para um público ocidental, não chegam a ser tão abruptas e extremas quanto em O Hospedeiro (possivelmente o filme mais abarrotado do cineasta), mas tornam-se ainda mais intensas, levando em conta a concentração em personagens limitados e a plausibilidade da história. O tom vai mudando conforme os personagens também vão adquirindo e perdendo controle nessa dinâmica de subir socialmente – e, em certo sentido, descer moralmente.

Bong é hábil, especialmente, na gradação com que insere as possibilidades de ameaça contidas no filme – que tem um potencial de violência desde a própria crítica social de onde ele parte. Em um específico ponto de virada, com uma revelação acerca de um lugar, até mesmo contornos de terror absurdista e até fantasmagórico pairam sobre Parasita; e quando as reais ameaças se concretizam, tem-se um dos atos finais mais magnetizantes e intensos dos últimos anos.

Ao mesmo tempo que é emocionalmente brutal, não chega a perder o cinismo e a disrupção com o “normal” (há um momento em que um dos protagonistas narra: “parece até que aquilo foi um sonho, mas não foi”), o que reforça a ideia do surrealismo das ações humanas, movidas pelo ódio e pela desesperança de uma ascensão plena. De certo modo, esse é o mote central de Bong: num mundo dividido entre cima e baixo, a tragédia maior se abate sobre os mais vulneráveis.

 

 

De Recife (PE), Jornalista, leonino típico, cinéfilo doutrinador.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *