Nota
Algumas histórias não precisam de explosões ou efeitos grandiosos para causar impacto. Às vezes, basta uma verdade desconfortável, escondida sob a rotina mundana, para nos atingir com força. Quando o silêncio da sociedade se torna cúmplice de abusos, a coragem individual de um homem comum pode ser o maior ato de resistência — mesmo que essa resistência comece apenas com um gesto pequeno e aparentemente insignificante.
Pequenas Coisas Como Estas é um retrato poderoso desse tipo de coragem silenciosa. Baseado na aclamada novela de Claire Keegan, o filme nos transporta para uma pequena cidade irlandesa na década de 1980, onde uma rotina simples e repetitiva esconde segredos sombrios mantidos pela influência esmagadora da Igreja Católica. A direção sensível de Tim Mielants captura esse ambiente de opressão velada, onde a verdade é sussurrada entre portas fechadas, mas raramente enfrentada de frente.
Cillian Murphy dá vida a Bill Furlong, um trabalhador humilde e pai de família que, em meio às entregas de carvão durante o Natal, se depara com uma realidade cruel e impossível de ignorar. Murphy, que recentemente conquistou o Oscar por sua atuação em Oppenheimer, usa seu prestígio para atrair o público para esta produção muito mais modesta — e é justamente essa combinação de estrela consagrada e história intimista que torna o filme tão poderoso. Ele não está ali para brilhar sozinho, mas para dar voz a uma narrativa que, de outra forma, poderia passar despercebida.
A atuação de Murphy é um estudo de contenção. Seu Bill é um homem de poucas palavras, mas que carrega uma profundidade emocional imensa. Cada olhar, cada hesitação, revela um turbilhão de conflitos internos. Ele é um homem que viveu a vida inteira aceitando o mundo como ele é, mas que, diante da injustiça, se vê forçado a questionar seu próprio silêncio. Fica a dúvida de que se Murphy consegue transmitir tanto com tão pouco, encaixando com o que o personagem pede ou se estamos acostumados ao fato dele interpretar sempre papeis com a mesma natureza introvertida.
O filme também destaca o peso da conivência coletiva. A cidade inteira sabe — ou pelo menos suspeita — o que acontece dentro das paredes do convento local, mas a maioria prefere desviar o olhar. Essa apatia compartilhada é o que permite que o abuso continue, uma crítica direta à maneira como sociedades inteiras escolhem ignorar injustiças quando elas não as afetam diretamente. Mielants constrói essa atmosfera sufocante com maestria, usando cenários frios e paletas de cores desbotadas para reforçar a sensação de que aquela cidade inteira está presa em um estado de hibernação moral.
O confronto de Bill com a Madre Superiora, interpretada de forma assustadoramente calma por Emily Watson, é um dos pontos altos do filme. A cena, embora aparentemente simples — uma conversa ao redor de uma lareira —, carrega uma tensão sufocante. Sem levantar a voz ou fazer ameaças diretas, a personagem de Watson encarna a autoridade inabalável da Igreja, e o medo que Bill sente é quase palpável. É uma lembrança poderosa de como o verdadeiro terror, muitas vezes, vem de figuras que falam suavemente, mas seguram todo o poder.
Além da crítica social, o filme também explora a jornada interna de Bill. Ele não é um herói clássico, mas um homem comum, com falhas e medos, que poderia muito bem escolher o caminho mais fácil e continuar com sua vida. Mas ele não o faz. E é essa decisão — pequena, mas moralmente monumental — que dá ao filme sua força emocional. Bill representa todos nós quando nos perguntamos: “Eu teria coragem de fazer o que é certo, mesmo que isso me custasse tudo?”.
No entanto, apesar da força de sua mensagem e das atuações brilhantes de Murphy e Watson, o filme acaba tropeçando em seu ritmo lento e na falta de um desenvolvimento mais profundo dos personagens secundários. Há momentos em que a narrativa parece se arrastar, e o impacto emocional, embora forte, perde parte de sua força ao se estender sem avanço significativo. A abordagem contida e o tom reflexivo podem fazer com que o espectador se desconecte em uma primeira experiência, tornando difícil se envolver completamente com a história.
Ainda assim, Pequenas Coisas Como Estas merece ser visto, especialmente por sua coragem em abordar um tema tão pesado e relevante. Cillian Murphy, ao emprestar seu nome e talento a uma produção tão delicada e necessária, não apenas nos entrega uma performance inesquecível, mas também lembra ao público que algumas histórias — por menores que pareçam — precisam ser contadas. E, mais importante ainda, ouvidas.
Victor Freitas

Pernambucano, jogador de RPG, pesquisador nas áreas de gênero, diversidade e bioética, comentarista no X, fã incontestável de Junji Ito e Naoki Urasawa. Ah, também sou advogado e me arrisco como crítico nas horas vagas.