Crítica | Pieces of a Woman

Nota
3.5

Um dos mais emblemáticos filmes do diretor húngaro Kornél Mundruczó foi lançado em 2014: o bastante controverso – e sempre digno de visita – Deus Branco, que tratava de uma menina cujo cachorro mestiço era deixado na rua por seu pai e passava por todo tipo de crueldade imaginável. O trabalho chamava atenção não só pelo uso de centenas de cães reais em cenas (às vezes brutais) e de escala impressionante, mas também pela sua perceptível alegoria ao senso de supremacia da Hungria no momento em que os refugiados sírios mais precisavam de ajuda. Tentando sem muito sucesso conciliar sua veia realista com algumas proposições mais esquemáticas e óbvias, o diretor/roteirista conseguiu com esse filme, no entanto, gerar no mínimo uma impressão forte. E, apesar de premissa e temática totalmente diferentes, Mundruczó faz praticamente o mesmo agora com Pieces of a Woman.

O filme começa com um casal em casa se preparando para o nascimento de seu primeiro filho. A esposa (Vanessa Kirby) quer ter o bebê em casa e chamou uma parteira, que acaba não conseguindo chegar e, por isso, manda uma outra profissional de sua confiança. O marido (Shia LaBeouf) segura firme as mãos da esposa e se prontifica para o que a parteira sinalizar. No decorrer do processo de parto, que dura os longos primeiros 30 minutos da projeção, entretanto, uma tragédia acontece; o espectador, então, acompanha na 1h30 que se segue as consequências emocionais – e burocráticas – do ocorrido para os personagens em uma montanha-russa de angústia, sentimentos mal resolvidos e despedimentos de culpa.

Apesar do protagonismo evidente de Martha, personagem de Kirby (numa atuação extraordinária, que deve conseguir uma indicação ao Oscar de Melhor Atriz), Pieces of a Woman tem um apropriado senso de abrangência; os acontecimentos no decorrer do filme são contados também pelo ponto de vista do marido, Sean (ótimo trabalho de Labeouf), e da mãe, Elizabeth (Ellen Burstyn, soberba). Levando em conta os longos momentos de silêncio de Martha, processando sua dor, é interessante que o roteiro distribua essas aparições inclusive para poder trabalhar um de seus principais temas: o controle das decisões e até mesmo dos sentimentos que definem a vida das mulheres.

Aliás, é notável o êxito de Mundruczó na concepção e composição dessas figuras, que rondam a vida da protagonista. Ele extrai, por exemplo, de LaBeouf um Sean bem mais realista do que a caricatura que ele poderia ser; e o ator responde na dose certa de naturalismo, equilibrando seu desespero e tristeza com suas falhas de caráter mais graves. Burstyn, por outro lado, encarna uma personagem que passa longe de despertar qualquer simpatia pelo espectador, já que saem de sua boca algumas das falas mais cruéis de todo o filme, e, ao mesmo tempo, escapa totalmente da armadilha de tornar Elizabeth a vilã que ela não é.

É justo dizer que Pieces of a Woman acumula drama o suficiente ao longo de suas interações cheias de dor e sofrimento (contidas no cotidiano e na resolução de questões mundanas) para que, lá na preparação para o que se poderia chamar de clímax, leve os personagens a despejarem algumas falas mais longas, entrando num confronto mais direto. Nesse sentido, é um trabalho que justifica seus monólogos com cara de “Oscar-tape”.

O diretor, no entanto, não consegue evitar algumas reiterações visuais que comprometem a sutileza e realismo das interpretações; sua câmera é cheia de planos-sequências e estilizações que, em momentos como aquele prólogo gigantesco, funcionam bem para mediar esse desconforto e intensidade emocional. Mas, quando passa a querer passar informações do cenário ou dos personagens (planos-detalhes nas plantas, na garganta engolindo em seco de Martha), soa reiterativo e repetitivo. É como se ele não se satisfizesse com os elementos implícitos inerentes ao drama – que é, no todo, forte em sua concepção e execução – e tivesse que expor cada um deles.

 

De Recife (PE), Jornalista, leonino típico, cinéfilo doutrinador.

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