Crítica | Pink Flamingos

Nota
4.5

“Filthy is my politics, filthy is my life.”

Babs Johnson (Divine) é uma criminosa que está lutando para manter seu título de “Pessoa Mais Imunda Viva”, que lhe foi dada pelos tablóides da cidade, enquanto isso, o casal Raymond e Connie (David Lochary e Mink Stole) está desesperado para tomar esse título, cometendo atrocidades com mulheres que eles sequestram. Essa é de uma forma super simplista um resumo do polêmico Pink Flamingos que trouxe notoriedade ao diretor John Waters por colaborar com a Drag Queen Divine. Mas porque um filme que foi duramente criticado e censurado na sua época e até hoje divide opiniões sendo chamado de “traumatizante”, “perturbador” e “insano” é considerado um dos marcos do cinema queer?

John Waters se tornou famoso por produzir filmes de baixíssimo orçamento, muitos estrelados inclusive pela Drag Queen Divine, que são nítidos em todos os aspectos dos seus filmes e que com o tempo acabou se tornando sua marca registrada. Em Pink Flamingos, por exemplo, há diversos pontos que podem ser tidos como “defeitos” do filme, especialmente pelo tom amador que o filme leva do começo ao fim, como por exemplo: a fotografia que, embora hoje em dia a qualidade da câmera se reflete num ar vintage para as cenas, a filmagem muitas vezes chega a ser trêmula e às vezes até incerta de quais pontos quer focar, as atuações também são extremamente amadoras, onde a entrega de falas não é natural, é excessivamente decorada e há um abismo entre a atuação da Divine com todos os outros atores. Além disso há a abordagem de diversos temas que o único intuito é chocar o espectador, como canibalismo, sexo explicito e uso excessivo e exagerado de sangue e comida que os atores se lambuzam. E com todas essas considerações, o mais surpreendente de tudo é que, no fim, todos esses elementos juntos fazem o filme dar muito certo.

John Waters foi sem dúvida um dos precursores do estilo, conhecido nos Estados Unidos como “Camp”, que ao pé da letra pode significar brega, exagerado ou algo muito teatral, mas que para o cinema e o teatro está atrelado principalmente à comédia do exagero. E Pink Flamingos, sem dúvida, é uma ótima representação dessa comédia dos exageros, trazendo um tipo de humor não só ácido como também seco e muitas vezes bastante direto ao ponto e literal, onde mesmo falando sobre temas pesadíssimos, com cenas hiper gráficas, as temáticas de sexo, assassinato e drogas servem como o humor para a maioria das cenas, especialmente por todo o corpo das cenas ser muito coreografado, e a falta de naturalidade também corrobora para o climax do humor de algumas cenas. O filme também moldou a forma que Drag Queens são vistas hoje em dia, principalmente nos Estados Unidos, já que, apesar de na América Latina e Ásia, drag sempre ter sido associada a comédia, isso não era tão comum assim na época de Divine, sendo os seus filmes com John Waters um dos marcos que levou novas possibilidades para as Drags estadunidenses, moldando inclusive a comédia que temos hoje levada pelo mainstream, como no reality RuPaul’s Drag Race, onde Divine e o diretor são sempre referenciados nas suas esquetes de atuação.

Pink Flamingos, na superfície, parece muito apenas um filme bobo, às vezes sem sentido, mas analisando o contexto da época em que o filme foi feito, dá para perceber a importância dele até hoje. Com tantas tensões políticas hoje em dia envolvendo direitos LGBTQ+ e sanções contra Drag Queens nos Estados Unidos, dá para entender bem a crítica por trás do longa de John Waters, por colocar pessoas queer* como “degeneradas”, “sujas” e “pervertidas” e ao mesmo tempo criticar a sociedade heteronormativa. Um exemplo é uma cena super simples da Divine apenas caminhando pela cidade, montada e com roupas coladas enquanto todas as pessoas que passam por ela, que não eram figurantes, a olham com olhar de nojo ou reprovação, e isso mostra que independente da personagem ser uma criminosa, ser “A Pessoa Mais Imunda Viva”, apenas pelo fato de ser um Drag Queen, gorda, com maquiagem e roupa extravagante, andando normalmente pela luz do dia, as pessoas vão a odiar pelo simples fato dela se vestir assim e não pelas suas atitudes. Cenas como essa mostram também a capacidade do diretor John Waters de conseguir transmitir muito com os poucos recursos que ele tinha.

Pink Flamingos é grotesco e insano sim, mas é um filme que moldou a comédia dos dias de hoje e desafiou a sociedade heteronormativa dos anos 70. John Waters é um dos diretores mais conhecidos de “trash cinema”, tendo sua filmografia voltada a filmes de baixíssimo orçamento, mas que foram importantíssimos para trazer aos holofotes um dos maiores ícones queer do mundo. Trazendo diversos temas polêmicos e perturbadores, Pink Flamingos definitivamente não é para pessoas sensíveis, especialmente por tratar de temas tão pesados como canibalismo, sexo e drogas, e com cenas bastante gráficas, mas esses temas gráficos foram extremamente necessários para desafiar a sociedade da época, visto que não haviam filmes desse jeito. E exatamente por essa atitude punk rock de expor essas temáticas mesmo com tantos riscos de boicote, que o filme conseguiu moldar tantos aspectos da cultura pop. Atualmente, Pink Flamingos infelizmente não se encontra disponível nem para streaming e nem para aluguel no Brasil e nem nos Estados Unidos.

 

*Queer: Termo tido como xingamento no passado para pessoas LGBTQ+ por se traduzir literalmente como “estranho” ou “diferente” o termo foi ressignificado com o tempo para representar e definir toda e qualquer pessoa que desafia as normas de gênero e sexualidade da sociedade.

Ilustradora, Designer de Moda, Criadora de conteúdo e Drag Queen.

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