Crítica | Rede de Ódio (Hejter)

Nota
4

O interessante de assistir a Rede de Ódio (2020) numa dobradinha com Corpus Christi (2019) – filme anterior do diretor polonês Jan Komasa que lhe rendeu a indicação ao Oscar 2020 de Melhor Filme Internacional – é constatar uma mesma visão sombria sendo orquestrada em dois projetos com enredos bem distintos e, ao final, igualmente carregados de desesperança. Enquanto um deles ainda propunha um norte moral plausível, embora momentâneo, para o protagonista, este aqui, lançado com muita coragem pela Netflix, reitera de maneira profundamente niilista os perigos da amargura num mundo e numa juventude ininterruptamente conectados.

São tantas as ações que se desencadeiam a partir da premissa, que fica quase impossível descrever a trama sem entregar demais. Resumidamente, então, Rede de Ódio parte do momento em que um jovem estudante de direito, chamado Tomasz, é inapelavelmente expulso da faculdade sob a acusação de plágio. O rapaz vem de uma família muito pobre, e quem paga seus estudos é um casal de elite liberal, a quem ele esconde primeiro a expulsão e, em seguida, seu novo emprego em uma empresa de marketing especializada em disseminar informações falsas e arruinar reputações para clientes misteriosos – o famigerado “gabinete do ódio”.

O desenrolar dessa bola de neve na qual Tomasz cai de cabeça conta também com duas obsessões surgidas desse contexto: a primeira é a filha desse casal que o ajuda financeiramente, a quem ele stalkeia nas redes sociais e constantemente impõe sua presença; a segunda é um político liberal, candidato a prefeito, que começa como apenas outro caso e gradativamente toma conta do conflito principal. Não obstante, nada domina mais o tempo de tela em Rede de Ódio do que a inescrupulosa vontade intensa do protagonista de se fazer presente – leia-se, importante – num mundo de crescente afastamento humano e de uma desigualdade, de certa forma, velada por pessoas que parecem (só parecem) se importar com os de baixo. Desde a cena inicial, da expulsão da faculdade, com a tristeza seguida de um cinismo estranhíssimo na expressão de Tomasz, fica nítida a ideia de uma figura já apresentada ao espectador, quebrada pela vida que a levou até ali – e suas atitudes subsequentes ao longo do primeiro ato só fazem atestar isso.

Não interessa ao muito bom roteiro de Mateusz Pacewicz a história pregressa do personagem – em momento algum do filme ele tenta expor razões didaticamente. Tão reprováveis, repugnantes e amorais são as escolhas de Tomasz, que há mais a se observar criticamente das terríveis consequências do que justificá-las racionalmente. Ou seja, definitivamente não é fácil conciliar esses muitos pólos de interesse da narrativa, além de fazê-los sempre servir a esse mote central da construção do protagonista, sem acabar se dispersando ou se repetindo. No entanto, pelo menos em termos de influência sobre os outros personagens, a ascensão de Tomasz talvez não seja plenamente crível, tornando algumas ações visivelmente arbitrárias. 

Felizmente, a direção de Komasa, que já demonstrou sua ousadia em histórias sobre problemas da juventude no mundo virtual no pesadíssimo Sala Samobójców (2011), cola com firmeza na movimentação do roteiro e compõe um universo de frieza inescapável, mesmo com iluminação neon saltando na tela. O personagem, vivido pelo excelente ator Maciej Musiałowski, é filmado quase sempre de forma incisiva, até intrometida, em planos com baixa profundidade de campo que não só expressam sua desconexão emocional com o todo, mas o separa ainda mais de qualquer ambiente possível. É como se tudo ao seu redor, para além das telas do computador e/ou celular, fosse um borrão de pessoas. E é curioso como, ao mesmo tempo, a significação da vida de Tomasz é se fazer parte de um todo que parece – ao seu ver – ter a todo instante um prazer sádico em humilhá-lo, nem que seja através de expressões de pena.

Em Corpus Christi, um trabalho igualmente interessante mas talvez um pouco menos corrosivo, Jan Komasa explora a mácula pesada da violência na vida de uma pessoa, mesmo ela buscando sair desse ciclo e, com um aceno de otimismo, ensaia sobre o que se pode tirar de bom numa situação eticamente tão conflitante quanto um jovem ex-presidiário se disfarçar de padre. Nessa situação, ao menos, o protagonista funcionava como um ponto fora da curva, uma figura perdida tentando encontrar seu lugar num espaço hostil de gente hipócrita. Rede de Ódio também lida com essa busca e com o obstáculo social da hipocrisia, mas mostra-se ainda mais radical; a deslocalização moral é trocada por um inexorável desvirtuamento de valores. E a inteligência dele está em compreender que Tomasz transforma seu rancor em munição – a qual faz questão de recarregar diariamente, enquanto escuta seus grampos – e, principalmente, em reconhecer o efeito brutal que esse sistema ilegítimo da violência e degradação cibernética tem diretamente no mundo real. E quando esse impacto chega, ele vem sem concessões.

 

De Recife (PE), Jornalista, leonino típico, cinéfilo doutrinador.

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