Crítica | Som da Esperança: A História de Possum Trot (Sound of Hope: The Story of Possum Trot)

Nota
2.5

Inspirado em uma história real, Som da Esperança é um filme protestante que retrata a vida de uma família residente em uma pequena cidade no leste do Texas, a qual está prestes a descobrir um grande propósito. Após a morte de sua mãe, a protagonista Donna (Nika King) passa por um processo de luto bastante doloroso, até receber o sinal de que precisa adotar crianças. Adentrando profundamente no processo de adoção e nas histórias e traumas sofridos por diversas crianças, Donna e seu marido, o pastor WC Martin (Demetrius Grosse) começam a criar um movimento dentro da igreja que incentiva os fiéis a adotarem as 77 crianças abandonadas e violentadas pelo sistema, como forma de salvação. Assim, apesar da obra ser tecnicamente muito bem executada, com atuações dignas de serem elogiadas, o filme acaba por trazer uma mensagem que deturpa mais ainda a ideia nociva que a sociedade já tem sobre adoção.

Donna é uma protagonista muito bem construída. Nika King realiza um trabalho impecável na elaboração de uma personagem difícil de ser desenvolvida, haja vista passar por diversos altos e baixos ao carregar um arco bastante complexo. O Demetrius Grosse também entrega excelência em seu papel enquanto pastor e marido de Donna. A relação deles, assim como o desenvolvimento de boa parte dos personagens, é bastante profunda, fator que traz viço para o drama presente na obra, que se torna extremamente palpável. No entanto, o exagero de gênero é tanto, que chega soar apelativo em certos momentos, como por exemplo a primeira vez que a Donna vai se educar sobre o sistema adotivo e são mostradas diversas imagens de crianças machucadas e violentadas. Porém, dialogando com a religiosidade evidentemente presente no filme, o apelo funciona enquanto uma ferramenta para reiterar e espalhar a “palavra” do protestantismo presente no interior dos Estados Unidos.

Dessa forma, é bastante interessante observar esse vínculo dos personagens com a religião, que é retratada de forma bastante realista. Torna-se relevante sim trazer narrativas sobre a profunda relação que famílias negras estabelecem com o protestantismo, uma realidade presente em diversos países, até mesmo aqui no Brasil. Apesar das nuances contraditórias, existe uma relação fomentada pelo processo de colonização que acaba por moldar vivências de diversas pessoas negras, o que acaba por vir a se tornar um assunto importante de ser discutido e representado. Sendo assim, Som da Esperança, retratando uma igreja majoritariamente frequentada e liderada por pessoas negras, consegue trazer essas nuances presentes nas conexões entre raça e religião. Em uma cena, por exemplo, o pastor WC Martin entra em contato com o dono de uma igreja luxuosa para pedir ajuda, e o empresário, enquanto um homem branco, nega esse auxílio. Após o ocorrido, WC conversa com sua esposa sobre, o que a leva a reação de afirmar “O que você espera desse tipo de pessoa? Você sabe que não podemos contar com eles”. Logo, fica evidente que o demarcador de raça é traçado bem antes da “irmandade” pregada pelo protestantismo em si.

Então, essas nuances acabam por trazer mais profundidade e complexidade para a obra, que se torna interessante de ser analisada até mesmo por um viés antropológico. Contudo, é inegável que existe uma escancarada e danosa “propaganda” sobre adoção, que acaba por promover uma nociva ideia sobre esse assunto que já é bastante mal-visto pela sociedade. Após o recebimento do “sinal” de Deus e adoção de duas crianças, Donna e WC Martin começam a pregar na igreja que esses jovens violentados precisavam da ajuda de todos, e a adoção seria a melhor forma de salvação, colocando o ato de adotar enquanto um preenchimento de vazio e sacrifício necessário. Todavia, o resultado é mostrado depois. Assim como todo sacrifício, existe o período de grandes dificuldades. Portanto, diversas pessoas que frequentam a igreja e até mesmo a Donna pensam em desistir de todo esse processo perante o caos que estava sendo ter que lidar com todos os impasses. No entanto, o processo de adoção não passa por esse viés. É necessário muita responsabilidade, condições emocionais, financeiras, rede de apoio, entre outros. Assim como se tornar pai/mãe de alguém independentemente de adotar é algo que advém de uma vontade de educar, criar, maternar/paternar em si e não salvar aquele indivíduo de alguma situação difícil.

Por conseguinte, Som da Esperança apesar de ter uma narrativa com personagens muito bem construídos, adentra em temáticas sensíveis de forma irresponsável, propagando um caráter apelativo que acaba por deturpar o conceito de adoção. Entretanto, é uma obra profunda com bastante conteúdo para ser analisado de maneira interdisciplinar, a qual pode servir de material para diversas pesquisas, principalmente no cerne de negritude e religião. Som da Esperança, então, consegue surpreender o espectador com a profundidade e complexidade de sua narrativa, no entanto, é inegável que a obra peca demasiadamente ao disseminar uma ideia totalmente distorcida sobre processos adotivos.


Estudante de cinema, pernambucana

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