Crítica | Tenet

Nota
2.5

Décimo primeiro filme de Christopher Nolan, Tenet (2020), o blockbuster que oficialmente reabriu os cinemas do mundo inteiro, parece às vezes um amontoado de tudo aquilo que fez a fama do diretor ao longo das últimas duas décadas.  Enquanto em pelo menos dois quesitos pontuais ele até representa uma reconhecível evolução, é também mais uma confirmação de suas principais deficiências dramatúrgicas – já muito evidentes desde o seu primeiro trabalho em longa-metragem, o suspense independente Following (1998).

Numa trama tão complicada que custa até dar a sinopse, tem-se aqui, muito resumidamente, uma organização de espionagem que recruta um homem de, diga-se, notável habilidade atlética (ao qual o filme se refere apenas como “o protagonista”, vivido por John David Washington) para desvendar os segredos por trás de uma tecnologia, que será criada no futuro, responsável pela inversão temporal de objetos. Com a descoberta de um importante algoritmo, o objetivo central da missão (compartilhada também pelo agente Neil, papel de Robert Pattinson) passa a ser impedir um oligarca russo (Kenneth Branagh), detentor de uma arma valiosa, de dar início a uma possível terceira guerra mundial com o potencial de dar fim a toda humanidade.

Numa primeira vista, especialmente levando em conta a estranheza provocada pela noção da inversão, Tenet realmente dá a impressão de que não apenas lidará com um conceito grandiloquente e demasiadamente difícil, mas o fará a partir de uma atmosfera insistente em pontuar a seriedade da situação a qual os protagonistas vão enfrentar. O próprio prólogo, envolvendo um atentado durante uma ópera, coloca o espectador no meio da ação sem explicações ou cerimônia, mas estabelece essa projeção de algo muito mais complicado do que uma simples abertura de James Bond. 

Diferente de A Origem (2010) ou Interestelar (2014), filmes nos quais Nolan dedica no mínimo a primeira hora de duração somente para explanar sobre os conceitos físicos que mais para frente serão colocados em prática, Tenet parece mais preocupado em cumprir mecanicamente a função expositiva do que em pegar o espectador pela mão e fazê-lo decifrar o quebra-cabeça. As primeiras interações entre os personagens ilustram isso bem: mal as pessoas se conhecem e começam a falar rapidamente sobre uma série de coisas as quais provavelmente vão passar batidas pelo público. Ao mesmo tempo, então, que o longa tem toda a exposição já conhecida do cinema de Nolan, seu didatismo parece consideravelmente menos burocrático do que de costume. 

Difícil, porém, é atestar até que ponto a velocidade do texto torna a ação mais orgânica e direta ou mais incompreensível. Por uma perspectiva mais desencanada com o enredo, pode-se argumentar que as sequências tem uma força inerente aos famigerados efeitos práticos e a esse realismo de liberdades cientificamente pseudo-plausíveis; leia-se, o espectador pode se entreter com a ação objetiva sem necessariamente captar todas as implicações temáticas envolvidas. Mas, por outro lado, a falta de entretempos narrativos, de transições que exponham mais daqueles personagens do que suas simples caracterizações superficiais, custa muito dramaticamente a Tenet. Fica claro que as set-pieces funcionam mais como essa brincadeira megalomaníaca de imersão do que propriamente como um efeito sensorial/dramático, já que tem pouco a revelar além de seu impacto prático e momentâneo (a explosão do Boeing 747 é o melhor exemplo).

Verdade seja dita, a impessoalidade e, consequentemente, o distanciamento emocional são algumas das características mais notáveis da obra de Nolan e, nesse sentido, Tenet é primo legítimo de A Origem, seu provável trabalho arquetípico. E é verdade também que seu mais novo trabalho não tem a mesma projeção sentimental do filme de 2010, embora o núcleo dramático da personagem vivida pela muito boa Elizabeth Debicki, no papel da esposa sofrida do antagonista, seja o mais próximo de bem desenvolvido que uma figura feminina ganha num de seus roteiros. Aliás, no tocante à evolução, os embates corpo a corpo são, possivelmente, os mais bem resolvidos do filme, tanto por sua clareza geográfica quanto por sua agilidade. E, apesar de Nolan seguir firme com sua assepsia e limpeza visual (ele, afinal, criou a guerra mais limpa e organizada da história em 2017, com Dunkirk), isso não o impede, aqui, de fazer os golpes serem minimamente sentidos. 

Mas, no saldo geral, a ambição de Tenet está muito mais em pose e auto seriedade do que em substância. Os discursos no clímax são demasiadamente datados e simplistas, ainda que envoltos em tanto vaivém temporal. A trilha de Ludwig Göransson (vencedor do Oscar 2019 por seu trabalho em Pantera Negra) evoca a propulsão e a gravidade célebre da parceria de Nolan com Hans Zimmer, seu compositor recorrente, mas martela urgência com uma altura tão histriônica que chama mais atenção para si mesma do que compõe a força das imagens. Mesmo um simples diálogo precisa da câmera girando ao redor dos atores e do som grave da música para a cena parecer algo maior.

Nas mãos de um diretor com senso de humor genuíno e gosto assumido pelo absurdo – e pelas possibilidades gráficas dele – Tenet poderia ser uma das experiências mais divertidas do cinema recente. Toda a grandeza da ação que envolve a inversão de carros e prédios, entre outras coisas, seria bem mais estimulante se o filme não estivesse tão preocupado em transparecer importância e abraçasse o nonsense. Nolan, do contrário, não confia no poder do absurdo e do incompreensível (erro fatal, inclusive, de Interestelar); conta uma história que é essencialmente a mesma de um Missão Impossível: Efeito Fallout (2018) – espiões procurando um plutônio escondido por um grande vilão com sotaque e intenção de destruir o mundo -, mas nem de longe com a mesma espirituosidade e franqueza. Com todas as suas virtudes notáveis e atores carismáticos, Tenet é um quebra-cabeça com tantas peças e cascas de banana que, no sumo, tem muito a falar e quase nada a dizer.

 

De Recife (PE), Jornalista, leonino típico, cinéfilo doutrinador.

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