Nota
Sabe aquele tipo de filme que crava seu nome na história, não só do cinema mas do mundo todo, e consegue se tornar um marco tão cultural a ponto de ditar a própria realidade? Tubarão, considerado por muitos o melhor filme de Steven Spielberg, conhece bem o conceito desse tipo de obra. O ano era 1975. Naquela época, apesar da sua imagem ofensiva, o tubarão não tinha a fama extremamente agressiva de hoje, tampouco causava o medo que muitos passaram a ter. Isso, de uma certa forma, mostra por si só o grande impacto cultural do filme, já que Steven constrói gradativamente o pavor que esse animal provoca não só nos personagens, mas em quem assiste também. Afinal, desde os primeiros minutos, quando a presença do tal bicho causa um certo desconforto, o roteiro já deixa evidente ali mesmo a sua proposta. Spielberg, acima de tudo, dá início à tensão que corre pelo filme na mesma proporção das ondas do mar, até mesmo quando não vemos o tubarão, mas o sentimos justamente pela tensão construída no ar. E Spielberg, no auge da sua genialidade, sabe muito bem conduzir.
É interessante, nesse contexto, observar a já citada onipresença do tubarão, algo que o transforma praticamente num vírus que, muitas vezes, não conseguimos ver. Tal questão encontra respaldo exatamente na ideia de negação. Afinal, da mesma forma que várias pessoas da cidade não acreditam na ameaça desse animal e negam que as mortes tenham algo a ver com ele, muitos indivíduos negam a existência de um vírus e se recusam a tomar medidas emergenciais para solucionar o problema, questionando, inclusive, a ciência e quem a pratica. Basta trocar, por exemplo, o tubarão pelo coronavírus que temos em mãos a comparação em estado bruto. E o fato de ter apenas uma ameaça – o referido animal – e não várias, além de tornar o suspense mais importante do que escancarar a criatura, deixa tudo ainda mais fidedigno.
A direção de Spielberg, dentro dessa atmosfera, se mostra um espetáculo. É impressionante a perspicácia do cineasta, porque ele pega um clima aparentemente pacato e o torna num verdadeiro emaranhado de pavores. Muito além disso, o diretor encontra brechas para trabalhar o horror lado a lado com o drama – a cena em que a mãe culpa a ineficácia da polícia diante da morte do filho, atacado pela criatura, é o retrato perfeito dessa mesclagem, pois vemos que não só o tubarão é o problema ali, mas a completa falta de preparo das autoridades para lidar com essa ameaça. Por mais que a maior autoridade policial – o xerife – faça de tudo para alertar a população, as atitudes irresponsáveis dos outros que o acompanham fazem com que as pessoas o culpem – e com razão. Em todo momento, Spielberg sabe que bater nessa tecla da irresponsabilidade é crucial.
Ainda sobre os quesitos técnicos, é impossível não falar da trilha sonora que consegue captar o sentimento mais profundo de pavor. Aqui, entre uma cena e outra, é possível sentir a presença do tubarão graças ao instrumental que o anuncia e o acompanha, quase como uma extensão da ameaça que a criatura causa. Por mais que o silêncio por vezes seja necessário (basta analisar, por exemplo, os ataques silenciosos), a trilha possui esse viés importante para demonstrar que o medo está nas pequenas coisas que acompanham a principal ameaça. E, se pararmos pra observar, veremos que toda filmografia de Spielberg é pautada no som – seja de instrumental, seja dos efeitos.
Quanto ao elenco, Richard Dreyfuss e Roy Scheider se destacam não só pelos seus personagens, mas pelas atuações. É interessante observar que, apesar da performance contida vista em ambos, há diferenças nas composições. Enquanto o primeiro constrói o seu papel – Matt Hopper, o oceanógrafo que alerta sobre o tubarão – com menos timidez, o segundo surge mais contido em cena com o seu xerife. Tal diferença se dá justamente pelas posições dos personagens – o policial, por exemplo, tem que manter a calma para alertar a população, mesmo que esteja tão com medo quanto o povo. São duas atuações muito bem conduzidas nessa atmosfera e que se assemelham exatamente nisso, principalmente nas sequências finais do filme, quando Hopper e Brody enfrentam o tubarão em alto-mar – aliás, um epílogo extremamente articulado e bem feito.
Cravando seu nome na história do cinema, Steven Spielberg não só mostra em “Tubarão” as camadas do medo, mas também o transforma numa crítica à sociedade, primordialmente às irresponsabilidades de governantes e autoridades no geral diante de um perigo e às pessoas que pouco se importam com as próprias proteções. É uma obra necessária e atemporal, mesmo que sua premissa principal seja o horror, e sabe como realizar essas críticas baseadas na realidade. Sem sombra de dúvidas, um dos melhores filmes do gênero. Aquele tipo de narrativa que abre espaço para outras sobre criaturas grotescas nas quais sempre cabem uma análise da própria sociedade. Obra-prima.
Vinicius Frota
Apenas um rapaz latino-americano apaixonado por tudo que o mundo da arte - especialmente o cinema - propõe ao seu público.